OS PENITENTES DO POVOADO JENIPAPO
Eduardo Bastos
Uma tradição de mais de 50 anos é resgatada por uma irmandade num dos povoados mais importante do município de Lagarto. Fomos lá conferir a história da criação e práticas desse grupo naquela comunidade
Penitentes rezam numa das casas da comunidade |
Fiquei com aquele história na mente, as imagens e os vídeos no aparelho celular e, no dia seguinte, ao encontrar meu amigo Kiko Monteiro na câmara de vereadores de Lagarto, mostrei-lhe as imagens e sugeri que aquilo daria uma bela reportagem para o Portal Lagartense. Kiko, que trabalha no site, concordou comigo na hora, e então voltei a manter contato com Adriana que, por sua vez, se encarregou de providenciar tudo que pudesse viabilizar nosso encontro com o "mediador" do grupo de Penitentes do povoado Jenipapo.
Dia 16 de março de 2016 eu, Kiko Monteiro, Benício Junior, Letícia Paz e Afonso Augusto fomos ao encontro dos Penitentes que enchem as noites dos jenipapenses com suas rezas, seus cânticos, sinos, e o som da matraca. (O amigo Afonso Augusto é, na atualidade, o principal agente cultural de nossa cidade. Mas ele é também, e acima de tudo, um graduado em História, um sujeito interessadíssimo nos fatos do passado e do presente, que tiveram por cenário a nossa cidade e município. Daí meu convite para que Afonso estivesse entre nós, testemunhando o que testemunharíamos àquela noite).
Alguns penitentes usam vestes roxas |
Após quarenta minutos de conversa com o "mediador" do grupo, nos demos por satisfeitos, nos dirigimos a um dos bancos da praça do povoado e ficamos ali sentados, papeando sobre o cenário cultural de Lagarto - sobre o Sarau da Caixa D'água e o Som na Praça -, e sobre Lampião, Maria Bonita e os cangaceiros (Kiko Monteiro é aficionado por esse tema e não ia perder a chance de nos falar sobre isso àquela noite). Ali, na praça, o som da missa não chegava a atrapalhar nossas conversas, e a lua passeava lentamente por sobre nossas cabeças, nos vigiando por entre copas de árvores altas e frondosas, até que o horário de entrarmos em ação chegasse.
Agora os relógios dos celulares denunciavam já passar das 22h. Chegara o instante de sairmos à procura dos Penitentes nas ruas do povoado Jenipapo. Ninguém sabe por antecipação em que beco, praça, rua, viela ou encruzilhada o grupo vai se reunir. Cada um vai surgir do nada no meio da noite, já vestido com sua túnica e com a cabeça coberta por capuz, pois um integrante jamais pode saber da identidade do outro; apenas o "mediador" é quem pode saber de tudo.
O grupo reza em frente a uma residência |
Origem e resgate de uma tradição
O grupo de Penitentes do povoado Jenipapo surgiu na década de 1950 e tinha como lideranças mediadores como Pedrinho, Seu Dionísio e Raimundo de Honório. Os grupos que tinham à frente essas pessoas eram chamados de cordões (Cordões são grupos de penitentes. No passado, haviam três grupos no Jenipapo: o de seu Dionísio, o de seu Pedrinho e o de Raimundo. O quarto “cordão” é constituído pelos penitentes que resgataram a tradição nesse ano de 2016). Há oito anos faleceu seu Raimundo, líder do terceiro cordão, e ai os penitentes ficaram esquecidos na comunidade. O mediador atual, junto com outros irmãos de movimentos da Igreja Católica, resolveram resgatar esse grupo, e o denominaram Senhor do Bomfim, em homenagem ao primeiro padroeiro da comunidade.
O número de integrantes do grupo é sempre ímpar |
Na atualidade, os penitentes do povoado Jenipapo contam com apenas um remanescente dos grupos fundadores. Entre os participantes atuais, encontram-se adolescentes, jovens e adultos. O grupo atual tem 23 membros, que entoam cantos próprios e católicos – já que os penitentes estão vinculados ao catolicismo.
Um grupo que preza o anonimato
As penitencias são feitas exclusivamente na quaresma, no dia da hora – último dia da quaresma - e ainda no dia de finados. O uso do capuz é a forma encontrada pelos penitentes para manter no anonimato cada um dos participantes – a identidade individual é um segredo, um mistério respeitado a todo custo pelos membros do grupo.
Os Penitentes dizem que se transformam enquanto oram |
Locais em que os Penitentes se fazem presentes
Os Penitentes rezam nas casas quando são convidados |
Os penitentes rezam também em grutas por entenderem que foi em uma delas que Cristo nasceu, e por serem locais reservados, em que eles se concentram exclusivamente para fazer orações. Recentemente, os penitentes do povoado Jenipapo estiveram numa gruta localizada no povoado de nome Quirino, e o ritual aconteceu à noite, pois as únicas ocasiões que justificam eles se reunir no período diurno é em dia de procissão do Senhor Morto e nos dias do encontro de Nossa Senhora das Dores com o Senhor dos Passos.
Quem pode participar da Irmandade
As vestes dos Penitentes obedecem a um padrão |
Apenas números ímpares
O capuz nunca pode ser tirado em público |
Um dia inteiro de jejum
Os Penitentes participam das procissões |
Os Penitentes do Senhor do Senhor do Bomfim do povoado Jenipapo observam um dia de jejum durante a Semana Santa. Cada um dos seus membros tira um dia para fazer jejum e orar. Um Penitente só poderá deixar o grupo depois de transcorridos sete anos desde seu ingresso. Um indivíduo, ao ingressar na irmandade e se tornar um penitente, assina um documento e assume o compromisso de permanecer no grupo durante sete anos, só podendo se afastar em caso de viagem, de morte, ou de descumprimento das normas - nesse caso, marca-se uma reunião para analisar o ocorrido e submetê-lo à votação, para se saber se o infrator deve, ou não, permanecer na irmandade.
Outras normas observadas pelos penitentes são a de acompanhar a procissão do Senhor Morto e a de ajudar o pároco da igreja quando forem convocados - mesmo nessa situação, não é permitido se revelar as identidades dos penitentes. Naturalmente, cada penitente já participa dos movimentos da Igreja, mas também ai ninguém sabe quem é quem.
O ingresso no grupo é uma decisão pessoal
O cipó caboclo é um componente da tradição |
As vestes dos penitentes do Jenipapo obedecem a um padrão copiado do antigo grupo, e não são fruto de investimentos individuas; são doações. Há pelo menos 05 pessoas na comunidade do Jenipapo que não participam do grupo, mas que o ajudam moral e financeiramente. Sempre que os penitentes precisam de algo recorrem a tais pessoas, e elas então veem em socorro. Quando a veste de um penitente não oferece mais condição de uso, recorre-se aos doadores - mesmo que o penitente possua condições financeira para adquirir uma nova.
O mediador acredita que o grupo de Penitentes nasceu por iniciativa de um rezador do Jenipapo que tinha por nome Dionísio e que, à época, atendia pessoas da comunidade que apresentavam problemas de saúde - muitos deixaram testemunhos confirmando que tinham alcançado a cura graças às rezas de seu Dionísio.
Oração “forte”
O branco das vestes dos Penitentes representa a plenitude |
Influências
O mediador esclarece que os penitentes são influenciados pelo catolicismo, não obstante a Igreja Católica não reconhecer o grupo como parte de um movimento. Mas a Igreja o respeita, e a paróquia do Jenipapo, inclusive, dá apoio. O exemplo maior disso foi o fato de o pároco daquela comunidade se mostrar por demais receptivo quando o grupo o procurou para expor a ideia de resgatar essa tradição, que havia sido interrompida há oito anos. O mediador deixa claro que, independente do sim ou do não do pároco, o grupo acabaria sendo formado, e diz ainda que, apesar de os penitentes ajudarem em atividades da Igreja, eles não vivem à sua mercê, não dependem dela, nem das ordens nem das orientações do padre para existir.
Os penitentes são influenciados pelo catolicismo |
O pároco do povoado Jenipapo não sabe e jamais saberá quem são os penitentes. Ele pode até desconfiar quem são os integrantes do grupo, mas o mediador diz que jamais chegará até o padre para revelar que é um penitente, pois, se assim o fizesse, estaria revelando um dos segredos mais respeitados pela irmandade.
Todo contato da sociedade com os penitentes é feito através do mediador. Sempre que alguém manifesta interesse em ajudar o grupo, é por meio do mediador que a doação se realiza - o mediador é também o porta-voz do grupo mas, em nenhum momento, se coloca diante da sociedade como penitente. As doações ao grupo podem ser feitas em espécie ou gêneros alimentícios - que se transformam em cestas básicas e são distribuídas pelos agentes de saúde em comunidades carentes durante a quaresma, em nome dos penitentes.
Sete estações, sete dores
O grupo reza em sete estações |
Uma história a registrar
Quando o ritual do grupo chagou ao fim àquela noite, naquela residência do povoado Jenipapo, quem carregava a cruz de madeira tomou a dianteira, saiu na frente, e, um por um, os Penitentes foram deixando a casa andando de costas. O matraqueador foi o último a sair e nos demos também por satisfeitos. Já era tarde da noite e teríamos que tomar o caminho de volta para que Benício Junior produzisse sua matéria para o Site Lagartense.
Nessa noite, eu também precisava deitar minha cabeça no travesseiro para poder reviver e pensar em tudo que vi e ouvi, e assim produzir um texto em que pudesse contar do meu jeito a história interessante do resgate da tradição dos Penitentes do Senhor do Bonfim do povoado Jenipapo.
Fotos: Adriana Paixão, Mônica Barbosa, Kiko Monteiro
Agradecimentos: Adriana Paixão, Mônica Barbosa, Kiko Monteiro, Afonso Augusto, Letícia Paz e Benício Junior.
Fotos: Adriana Paixão, Mônica Barbosa, Kiko Monteiro
Agradecimentos: Adriana Paixão, Mônica Barbosa, Kiko Monteiro, Afonso Augusto, Letícia Paz e Benício Junior.