Quando registrou sua frase mais famosa, o escritor Euclides da Cunha procurou expressar um sentimento que não apenas justificava a bravura de um povo que resistia acuado no arraial de Canudos, mas, acima de tudo, que explicava por completo a condição de um homem que teima em sobreviver em uma das regiões mais hostis do nosso planeta.
É sabido que o sertanejo está sujeito a contribuir com a economia do país em pé de igualdade com os cidadãos dos demais Estados do nosso país. Não obstante, por conta de um projeto econômico e social que sempre priorizou os investimentos no centro sul do país, ele nasce condenado a sobreviver privado dos benefícios sociais comuns às pessoas que desfrutam do privilégio de morar um pouco mais abaixo da linha do equador.
Como se não bastassem os obstáculos colocados pelo próprio homem, o sertanejo está predestinado a se confrontar a cada dia com as dificuldades que lhe são impostas pela própria natureza. E é justamente na labuta para preservar a vida – mesmo em meio a um oceano de privações – que o sertanejo desenvolve os antídotos que lhe permite criar defesas para enfrentar o exercício diário pela sobrevivência. Daí, o segredo desse homem em criar seus mecanismos de adaptação às condições sociais mais adversas. E é essa peculiaridade do homem que habita a região árida do nordeste, que está sintetizada de forma magistral na frase escrita com a maior das sensibilidades por Euclides da Cunha.
Canudos, em particular, foi um momento único na vida de um grupo de nordestinos. Foi o momento em que um povo teve a oportunidade de não apenas questionar uma ordem política e econômica imposta, mas de propor saídas, a partir de novas relações sociais, que mexessem num dos maiores traumas da região: o problema da concentração de terras em poucas mãos.
Recorrendo aos ensinamentos cristãos, o beato Antonio Conselheiro conseguiu reunir em torno de si uma legião de pessoas que permaneciam à margem dos projetos governamentais, e que haviam sido expulsas de suas propriedades devido a pressões de latifundiários por demais gananciosos.
Mas a proposta de Antonio Conselheiro – de construir uma comunidade igualitária, regida por suas próprias leis, em que os bens materiais e a terra pudessem ser compartilhados por todos, sem distinção – batia de frente com os interesses do sistema republicano que acabara de se instalar no país, com os grandes latifundiários e até mesmo com setores conservadores da igreja católica.
E, por contrariar interesses tão distintos quanto poderosos, a comunidade organizada em torno do arraial de Canudos levou as forças reacionárias de época a se reunirem em torno da proposta de extinção daquele exemplo de sociedade. Era preciso pôr fim de uma vez por todas não apenas à pessoa física de Antonio Conselheiro e seus “fanáticos seguidores”, mas, e principalmente, lançar ao esquecimento as propostas contidas no projeto posto em prática pelo beato e seus seguidores.
E, nos conflitos sociais que tiveram lugar em nosso país, jamais a coragem de um povo foi colocada tão à prova, como o foi em Canudos. Isso demonstra o quão forte é o sertanejo; isso prova ainda que a aparente fragilidade física do sertanejo esconde seres que, quando decidem defender uma idéia, ou resolvem superar os limites que a natureza lhes impõem, são capazes de se transformar em verdadeiros titãs da resistência.
Os habitantes de Canudos foram fortes – como o é, alias, todo nordestino quando resolve abraçar uma causa justa -, e resistiram por batalhas consecutivas, mostrando que, mesmo acuados, desarmados e maltrapilhos, souberam, como ninguém, usar o dom da estratégia para superar muitos dos obstáculos surgidos ao longo da luta contra inimigos infinitamente mais superiores.
É provável que muita gente – por absoluto desconhecimento de causa – continue a acreditar que Canudos não passou de um movimento religioso, comandado por um indivíduo lunático e alienado.
O que muita gente jamais vai chegar a admitir, é que Canudos (que teve toda sua população assassinada, e depois encoberta pelas águas do Lago de Cocorobó, para que seu exemplo fosse de uma vez por todas apagado do imaginário do povo brasileiro) continua a ser o farol a guiar as ações de todos aqueles que lutam não apenas por justas distribuições de terras, mas também por dignidade para o povo desse país.
Se no presente os movimentos sociais no campo tomaram uma nova feição, isso se deve à evolução dos tempos e às exigências da conjuntura. O que não se pode negar é que Canudos continua como um símbolo de resistência, a ser seguido por todos aqueles que desejam encarnar a bravura do forte homem sertanejo.
José Eduardo Bastos
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