domingo, 21 de janeiro de 2018


O QUE SERÁ QUE PASSAVA NA MENTE DA MOÇA QUE CONHECE A RIQUEZA APENAS PORQUE ELA INVADE SUA CASA ATRAVÉS DAS TELAS DA TV E DO CELULAR?



Não faz muito tempo, integrei um dos grupo que percorreu a maioria dos mais de cem povoados existentes no nosso município. O objetivo desses deslocamentos era visitar e fotografar os prédios que abrigam escolas públicas nessas localidades para, com isso, formar um banco de imagens que pudesse ser usado quando fosse preciso mostrar à sociedade a precariedade da estrutura física das nossas escolas municipais.

Quem reside na cidade e raramente - ou nunca - vai a um povoado, jamais terá a noção exata da dificuldade que é trafegar pelas estradas esburacadas que ligam a sede do município ao resto do território lagartense. Dentro de um carro ou em cima de um moto, demora-se horas para se percorrer distâncias que, em condições normais, seriam facilmente vencidas em questão de minutos. É de se imaginar que as pessoas que moram nessas lugares vivam uma espécie de isolamento forçado. Distantes do que é perto, essas populações geralmente vivem e sobrevivem privadas e impossibilitadas de quase tudo, até de se deslocarem com alguma rapidez, quando uma emergência assim exige.

Numa de nossas viagens para uma dessas comunidades que parecem esquecidas no tempo, registrei em minha retina uma cena que não apenas insiste em não se apagar de minha memória, como sempre me leva a refletir sobre o quanto é invasiva e cruel a emissora que detém a maior audiência entre as televisões que operam em nosso país.

A moto em que viajávamos trafegava por uma estrada que mais parecia um corredor, quando alcançamos o lado direito de uma casa que se estendia para uma estrada vicinal. Era uma casa muito simples, de telhado baixo, rodeada por um terreiro de terra batida, limitado por um quadrante cercado por macambiras e um fio de arame farpado. Uma porta tosca, um batente e uma janela - onde dois panos de chita faziam a vez de uma cortina - compunham a parte frontal da humilde residência. À nossa passagem, percebi que um cachorro magro cruzara o terreno, emitindo um latido destituído de ameaças. Também pude observar, numa pequena cobertura anexa ao último cômodo da residência acanhada, um fogão de lenha castigado pelo tempo e coberto por telhas de eternite, onde duas panelas amassadas de alumínio, apoiadas numa trempe suspensa por quatro tijolos, cozinhavam o que deveria ser o almoço daquele dia: feijão e arroz. Os únicos sinais de modernidade naquele cenário da parte lateral externa da residência eram os fios sob nossas cabeças, que levavam energia elétrica para aquela casa, e uma antena parabólica apontada para o céu.

Segundos depois, a moto atingiu um ponto onde toda a frente da residência passou a compor nosso campo visual. Enxergamos então uma moça - uma moça de traços fisionômicos bonitos, de cabelos pretos - longos e escorridos - e pele ligeiramente queimada pelo sol. Ela estava sentada numa peça de madeira que servia de batente e seus olhos estavam fixos no aparelho celular que tinha numa das mãos. Nosso veículo avançou um pouco, o suficiente para percebermos que a moça sentara de costas para um aparelho de TV de muitas polegadas - desses que se compra em prestações a perder de vista. A garota levantou os olhos por uma fração de segundos à nossa passagem, mostrando-se concentrada e mais interessada no diálogo ou informações que chegavam até ela por meio do telefone.

A figura da moça foi se afastando de nós à medida que a moto ia avançando e que um outro traçado no caminho mudava nossa perspetiva. Novas paisagens foram se descortinando à frente, mas eu não conseguia me desvencilhar da cena que ficara para trás há pouco. Não que a realidade da qual nos distanciávamos - ponteada de contrastes - fosse rara ou me causasse estranheza. Isso não! Quando viajamos pelo interior do Brasil, uma das cenas mais comuns que passeia ante nossos olhos é a de pessoas morando em condições sub-humanas, de cujos casebres ou barracos apontam antenas espinhas de peixes ou parabólicas. Nos últimos anos, também o celular tem sido a novidade tecnológica que mais se disseminou no meio dos diversos estratos sociais espalhados pelos rincões do nosso país. O que mais impressionava, e que me fazia refletir, mesmo enquanto a moto sacolejava na estrada de terra batida, era a constatação de como a miséria absoluta convive com alguns símbolos da modernidade nos diferentes espaços sociais, sem que alguém atente para as implicações disso na vida das pessoas socialmente mais vulneráveis.

É sabido de todos nós que a televisão brasileira tem uma programação uniformizada para todo o território nacional. Todos os dias ela invade também a casa daquela moça mostrando uma outra realidade, de personagens bem vestidas, bem maquiadas e sentadas em mesas onde se servem de banquetes. Todas as manhãs, tardes e noites, o mundo daquela garota é invadido por um outro mundo, cheio de fartura, de glamour e de luxo. O mundo que a telinha apresenta àquela garota com toda naturalidade é um mundo que ela só poderá experimentar um dia em sonho. Então, quando a moça desgruda os olhos da tela da TV, ela senta na mesa para comer o feijão com arroz de sempre - quiçá, um dia ou outro acompanhados de um ovo ou pedaço de carne. Quando a noite avança, o aparelho é desligado na sala e a moça vai para a cama, seu estômago tem que se conformar com um jantar muito mais modesto que os saboreados pelos personagens das novelas. A moça acordará no outro dia e constatará que sua vida é muito menos colorida, bem mais difícil e muito mais previsível do que as mostradas nos enredos das novelas.

E aí eu me pus a imaginar o que passaria pela mente daquela moça quando, todos os dias, ela é submetida a esse choque de realidades. Fiquei pensando também ali na garupa da moto sobre os sentimentos que dominam seu coração nos momentos em que ela se põe a comparar sua existência de privações com a boa vida de gente do mundo lá fora, revelada na encenação dos personagens da TV e nos flashes da vida real deles. Fiquei matutando até que ponto aquele mundo de diversão, de fantasia e de sotaques diferentes mexe com a psique daquela garota, influenciando seu comportamento, seu jeito de ser e até os passos que ela dará para construir seu futuro.

quarta-feira, 7 de junho de 2017


CIDA SANTOS

 SENTIMENTOS E SONHOS GANHAM FORMAS E CORES NA PONTA DO SEU LÁPIS



                                                                  Eduardo Bastos





Aparecida Souza dos Santos (Cida) tem 20 anos e hoje reside no município de São Cristóvão, na companhia de cinco meninas, num apartamento bancado pelo Programa Residência Graduação, da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Cida residia até pouco tempo aqui em Lagarto com seus pais, Arnaldo Justino (Nem) e Maria Ivonete de Souza Santos (Nete), numa casa localizada na Rua Travessa A, próximo ao Colégio Estadual Dom Mario Rino Siviere. Aparecida tem como irmãos Alisson Souza dos Santos, 17 anos; Maria José Souza dos Santos, 19 anos; e Thiago Souza dos Santos, 8 anos. Moisés e Elisângela também são Irmãos de Cida, fruto de um primeiro casamentos do seu pai.

Atualmente, Cida estuda na Universidade Federal de Sergipe, onde cursa Design Gráfico. A Infância dessa moça não foi diferente da de milhares de brasileiros, e, em sua casa, havia poucos recursos, alguns ou nenhum brinquedo. Mas ela diz com emoção que, apesar de toda simplicidade, de todas as adversidades, teve uma infância maravilhosa. Aparecida e seus manos sempre brincaram muito, com tudo que encontravam pela frente. Ela e seus irmãos eram felizes, e os responsáveis por essa felicidade eram seus pais, pois, mesmo diante de uma vida de pobreza material, eles sempre buscavam manter os filhos distantes dessa realidade - não obstante, Cida e seus irmãos, à medida que iam crescendo, percebiam nos olhares preocupados de Nem e de Nete que não estava sendo fácil tocar a vida. Porém, os genitores dessa garota sempre se mantiveram fortes, e, para essa ela e seus irmãos, eles são exemplos​ de honestidade, de força, de fé e simplicidade. A eles Cida deve tudo que é hoje e tudo que possa vir a ser​ amanhã. Aparecida afirma estar em permanente evolução e espera um dia ser a metade dos seres humanos que seus pais são. A mãe e o pai dessa moça são seus maiores motivos para ela não desistir de crescer na vida como pessoa e como profissional. O ‘painho’ e a ‘mainha’ de Cida toda vida a ensinaram a ser forte, a nunca abaixar a cabeça para ninguém, a seguir em frente mesmo que nada estivesse dando certo em determinado momento. A ensinaram ainda a se colocar no lugar dos outros, a entender que o sofrimento alheio também é o seu sofrimento, e a amar o próximo.


Cida tinha entre seis a sete anos quando seu ‘painho’ decidiu se mudar com a família para a cidade de Lagarto, com a promessa de que financeiramente a vida iria melhorar - e Cida diz que de fato melhorou. Seus primeiros anos escolares em Lagarto foram vividos frequentando a Escola Manuel de Paula. Quando avançou para a primeira série, ela foi estudar na Escola Estadual Dom Mario Rino Siviere, onde passou a maior parte da vida escolar. Aparecida confessa que nessa escola viveu ótimas experiências​, conheceu pessoas maravilhosas e professores incríveis. Foi no Dom Mario também que Cida descobriu o amor pelo esporte, a paixão pela leitura, o interesse pelo estudo e (claro) o fascínio pelo desenho. Aparecida Souza dos Santos confessou que sempre contou com o incentivo dos professores do Silvio Romero, colégio estadual onde concluiu o 2° grau. Ali, essa menina conheceu ótimos professores, que sempre a incentivaram a seguir em frente e a não desistir dos seus sonhos.

QUEM É CIDA?


Nossa, que pergunta difícil! Então... eu sempre digo que falar sobre mim é algo muito difícil, porque geralmente eu só olho mais o lado negativo de mim mesma. Mas eu diria que sou uma pessoa bastante curiosa em relação a querer conhecer o mundo, conhecer as pessoas, conhecer mesmo aquilo que não me convém, entender melhor o desconhecido, aquilo que eu não aceito como verdade. Eu penso que precisamos conhecer algo, mesmo que não concorde, para ter argumentos contra ou a favor. Eu sou muito curiosa. O desenho mesmo… primeiro o desenho aconteceu num momento da minha vida em que eu era muito ativa, gostava de jogar e brincar, e, por algumas complicações de saúde eu tive que ficar parada por um tempo. E eu não gosto muito dessa coisa do ócio, de ficar parada - eu fico muito ansiosa. Então eu pensei: meu Deus, o que eu vou fazer?! Estava muito entediada! Aí eu disse: ah, bom, já que eu não posso estar correndo nem jogando, eu vou desenhar, porque desde criança eu rabiscava algumas coisas, mas não havia identificado ainda como uma paixão, talvez por, na época, estar muito ligada à música, então meu foco era ser cantora, eu tinha a ilusão de que minha voz era boa. Eu só descobri mesmo que poderia desenhar, que queria desenvolver melhor meus traçoa, há oito anos.

CIDA, QUAL É A PRIMEIRA LEMBRANÇA QUE VOCÊ TEM DA VIDA?

Nossa! Eu acho que é da danação de criança, de brincar, correr - porque eu sempre fui muito danada, eu sempre gostei muito de brincar. Na minha infância eu brincava muito com meus irmãos, a gente sempre gostou muito de brincar e de correr, e tinham os amigos… Eu gostava muito de esportes, principalmente de handebol. Eu tive uma infância pobre, basicamente não tinham muitos recursos, mas, com relação à educação que meus pais me deram e ao amor que a gente tem ali dentro da família, e a relação com meus irmãos, graças a Deus sempre foi algo para mim muito produtivo, muito bom, que me enriqueceu como pessoa e me ajudou a ser o que sou atualmente. Na infância, eu via o esforço dos meus pais para trazer alguma coisa para dentro de casa. É até mesmo complicado falar dessa postura dos meus pais, porque vejo eles como pessoas muito guerreiras, que passaram e passam por muitas adversidades, mas a vida é assim. A gente passava por muitos problemas, mas eles se esforçavam para que a gente não percebesse de fato o que estava acontecendo. Mas a gente percebia o jeito como eles estavam. Mas enfim.. eles sempre procuraram é… meus pais sempre me incentivam bastante. Eles perceberam minha paixão pelo desenho, e estão sempre do meu lado. Mas é isso... o que eu lembro da infância é só danação, brincadeiras, tem as partes ruins, as necessidades e tudo mais. Mas quando se tem amor isso é o de menos, não é?

VOCÊ SEMPRE ESTUDOU EM ESCOLA PÚBLICA?

Sim, eu sempre estudei em escolas públicas. Assim que cheguei em Lagarto aos seis anos eu estudei primeiro [na escola] Manuel de Paula, localizada no bairro Campo da Vila, depois no Dom Mario - minha vida escolar foi praticamente toda no Dom Mario. Quando passei para o primeiro ano, eu vim para o Colégio Estadual Sílvio Romero. Do Sílvio Romero só sai mesmo no terceiro ano, quando passei através do ENEM para a Universidade Federal de Sergipe.

VOCÊ SEMPRE FOI UMA BOA ALUNA?

Então, eu costumo dizer que tive uma fase de aluna muito tímida, e, por ser muito tímida, os professores diziam que eu era uma boa aluna. Mas eu não me achava muito estudiosa. Levei a sério isso de estudar mesmo a partir da 7ª série. Aí eu passei a correr atrás, a procurar dicionários, a ler os livros. Atualmente, eu acho que estudar e ler é uma das coisa importante para você evoluir como ser humano, não somente isso, mas se informar te ajuda a analisar melhor a realidade. Então, foi a partir da 7ª série em diante. Antes eu era bem tímida - ainda sou, mas antes eu era extremamente, tipo de ficar muito nervosa nos trabalhos e até passar mal. Mas ultimamente eu procuro ter um controle maior sobre a minha timidez - porém, ainda fico meio nervosa quando eu vou falar. Mas aí eu… é meio complicado isso.



VOCÊ FEZ CURSINHO PARA INGRESSAR NA UNIVERSIDADE?

Eu fiz o ENEM para entrar na universidade. Estudei no Pré-Universitário da SEED durante um ano e fiz estudos em casa também, e fiquei na lista de espera e depois fui chamada. Como primeira opção eu tinha escolhido Design Gráfico, e Serviço Social como segunda. Passei em Serviço Social, mas o que eu queria mesmo era Design Gráfico. Quando eu descobri que passei, que estava na lista de espera de Design... cara, fiquei muito, mais muito feliz! Meus pais e irmãos também ficaram muito felizes só pelo fato de eu ter entrado na Universidade, e eu fiquei ainda mais feliz pelo fato de ser chamada para estudar aquilo que realmente eu queria. Na verdade, a pessoa que me deu a notícia foi uma grande amiga minha, Cíntia, e foi uma notícia maravilhosa.

FALE DO IMPACTO DE INGRESSAR NA UNIVERSIDADE

Então, a gente… eu pelo menos entrei na Universidade sabendo que haveria uma grande mudança em relação aos professores, porque no ensino médio há um grande cuidado por parte dos professores (pelo menos dos professores que eu tive) com a forma como eles passam o conteúdo. Mas já haviam me alertado que quando eu chegasse na Universidade os professores iriam pegar muito mais pesado. De fato, eles pegam pesado, mas pelo menos os meus professores - e isso eu observo em muitos deles, principalmente em uma chamada Ana Carolina, e em um outro de nome Vladimir, e que é de filosofia - têm cuidado ao nos repassar os conteúdos, e amor à profissão. E, quando eu passo por profissionais assim eu fico ainda mais inspirada, porque eu acho que quando alguém faz algo por amor, e transborda esse amor, isso se torna inspirador. É tanto que eu tive uma professora de português no [Colégio] Sílvio Romero, chamada Silvana, que transborda amor pelo que faz. Eu sempre pensava em como ela era inspiradora, todo o cuidado que tinha com os alunos, o amor pela profissão e pela vida - realmente ela é uma mulher admirável e exemplo a ser seguido. A gente tem a mania de achar que apenas o dinheiro importa! É bom ganhar dinheiro; não é ruim. Mas se você não procura os meios certos para isso, através dos meios que são bons para sua vida, vai ser difícil você ser uma pessoa feliz, profissionalmente falando. O ambiente da universidade é totalmente diferente. Eu diria que é um ambiente bem mais competitivo. Ali a competição está em cada esquina e você tem que saber lidar com isso. Eu mesmo percebo que a competição não é muito saudável, pois as pessoas fingem que estão ao seu lado, quando o que elas querem mesmo é pisar em você. Mas, assim… em relação ao curso, eu amo! Apesar de todas as dificuldades e de todo cansaço mental, eu sou muito apaixonada pelo curso que faço. Adoro as pessoas também, os amigos que eu consegui lá são magníficos e me ajudam a enfrentar os obstáculos. Porque depois que eu entrei na universidade trabalhei durante algum tempo, meio período como aprendiz do SENAC, porém eu percebi que para mim - que não tenho nada, e que estou começando agora - seria muito importante participar de eventos, e ter tempo para estudar a fundo os assuntos, me aprimorar para me tornar uma ótima profissional. Foi então que senti a necessidade de ir morar em São Cristóvão, próximo a UFS. Mas, como não tenho condições financeiras para alugar uma casa, me inscrevi no programa Residência Universitária. Eu passei e estou morando numa casa próxima à universidade, junto com mais cinco meninas. Isso facilitou muito minha vida, pois passei a ter tempo para estudar, e até para me debruçar mais sobre o desenho, porque, apesar de muita gente pensar que desenhamos muito no curso de Design Gráfico da UFS, a gente não desenha. O desenho é uma das ferramentas. O que tem mesmo é muita teoria, o que é muito importante, porque você entende melhor o seu papel na profissão, todo o processo, e sua visão amadurece. Tenho um professor que nos falou uma vez sobre essa questão de inspiração, porque quem atua nessa área criativa sofre muita influência da inspiração. Então ele nos falou que devemos olhar a inspiração como uma grande amiga, mas que nos deixa na mão quando a gente mais precisa (RISOS) - então, é preciso correr atrás. Isso me fez analisar muitos pontos e entender que eu não posso esperar que as coisas aconteçam; eu tenho que correr atrás delas. Eu preciso estar no meio das coisas que eu gosto, ouvir músicas - eu sou apaixonada por música clássica e gosto muito de rock e MPB. Adoro ver animes. Gosto também da natureza e de observar as relações das pessoas. Mas é isso, na universidade a gente entra num universo completamente diferente, e você tem ali uma responsabilidade ainda maior. Eu ainda estou completamente perdida, eu ainda estou tentando me encontrar, tentando organizar de alguma forma minha cabeça para o que vai vir na frente, porque a gente vê a universidade como algo difícil, mas o mercado lá fora é muito mais. Vai ser uma surra! O professor fala que a gente acha a universidade difícil, mas ele lembra que ali a gente pode errar, ali a gente tem um professor ao lado para tirar dúvidas, e no mercado ninguém quer saber se você errou ou não; você está lá para acertar - infelizmente ou felizmente é isso. Mas é isso… a universidade é um ambiente que, se você souber aproveitar, é maravilhoso. Mas, se você deixar se levar pelas más influências... que têm muitas também… [A vida universitária] é o momento que você tem que aproveitar ao máximo, porque você passa por tantas dificuldades para passar, passa por tantas dificuldades para continuar lá dentro, e para sair de lá também, e você não aproveitar isso ao máximo... por mais que seja cansativo - e é muito cansativo… Eu amo meu curso - como eu já falei… Eu estou muito feliz com a minha escolha até agora.


Cabeça erguida e um olhar triste ou cansado... É um olhar de quem não possui a certeza do futuro, de quem está a buscar forças para seguir em frente mesmo com todo cansaço. Os pássaros saindo de seu peito representam coisas e pessoas que precisou deixa ir, pois sabia que por mais difícil... assim seria melhor. A passagem por onde saem os pássaros está quebrado, o que indica que abdicar de coisas e pessoas que o fez bem em algum momento, não foi algo fácil, exigiu muito de si. Enfim, tenho um carinho muito grande por esse desenho, pois assim é minha vida. Abdiquei de muitas coisas, assim como qualquer um precisa abdicar para conseguir outras que serão melhores. Não foram escolhas fáceis, hoje tudo parece muito simples, mas, não foi, foi desgastante. Assim como outros desenhos, há outras interpretações possíveis... (Cida Santos)









QUANDO FOI QUE VOCÊ FEZ O PRIMEIRO DESENHO EM SUA VIDA?


Desde criança eu sempre rabisquei. Eu até fui uma vândala, rabisque o livro da escola (RISOS). Mas, o primeiro desenho que fiz para dar continuidade, que me moveu a querer estudar a fundo o desenho foi há aproximadamente oito anos, e foi como eu já falei, eu tinha passado por algumas complicações de saúde e eu fiquei sem poder fazer as atividades que eu estava acostumada a praticar. Na época eu tinha o quê? 12 anos! Eu era uma pré-adolescente e gostava muito de brincar. Mas me vi obrigada a ficar parada. Aí eu peguei uma folha de papel e alguns lápis de cores - que até hoje são os meios preferidos para finalizar meus desenhos, porque eu acho desafiador. Meu primeiro desenho foi uma modelo, pois eu lembro que meus primeiros rabiscos tinha a ver com roupas, uma vez que minha mãe comprava revistas, e eu ficava olhando, tinha a mania de ficar folheando as revistas para ver os tecidos e os caimentos das roupas. E eu pensei em como queria representar aquilo através do desenho. Aí eu fiquei a rabiscar e meu primeiro desenho foi uma menina, uma modelo. Passei então a retratar apenas modelos - o desenho de moda, como falam. Fiquei, a partir daí, de três a quatro anos só fazendo desenhos de moda. Só que, de tanto desenvolver, ver referências e estudar, eu senti a necessidade de ter o desenho como uma forma de desabafo, de representar algo além de roupas. Eu passei a desejar colocar no desenho alguns elementos que, de algum modo, representassem o que eu estava sentindo naquele momento, ou alguma coisa que eu vi, que eu observei, que me incomodou. São coisas que eu coloco de uma forma sutil, porque, como eu já falei para algumas pessoas, para mim é como se eu estivesse contando um segredo através do desenho. Às vezes eu procuro passar uma mensagem sem deixar o que quero dizer muito explícito, até porque são coisas bem pessoais mesmo. Outras são desabafos, reproduzem aquilo que vejo no cotidiano. Atualmente meu desenho está passando por uma fase em que eu procuro questionar essa questão do padrão, porque, desde criança, sempre me senti incomodada com essas coisas de as pessoas que são gordas serem vistas negativamente [dentro do mercado de moda]. Sempre me incomodou muito também essa coisa de um negro não poder ser representado em qualquer área, ou estar participando de qualquer evento e as pessoas olharem e dizerem: nossa, um negro! Com meu trabalho, eu tento contribuir para que um dia o negro possa ser representado numa pintura ou até mesmo num comercial, e isso seja aceito com naturalidade pela sociedade. Em nosso país o negro ainda é visto como se a cor de sua pele medisse o grau de sua inteligência e sua capacidade de fazer as coisas. Eu comento com meu namorado que eu tenho vontade de que as pessoas olhem para meus desenhos e elas percebam que ali está uma pessoa que pode ser representada como qualquer outro ser humano que possui suas dores, sua beleza, seus sonhos e medos. Têm alguns desenhos meus que eu procuro fazer essa ligação do homem com a natureza, de buscar essa relação que deve ser sempre pacífica, isso depois de ver muitas fotografias que possuem essa temática. Eu gosto de representar alguns elementos da natureza, como flores, e principalmente borboletas, como uma questão simbólica mesmo.

QUAL O PRIMEIRO DESENHO SEU QUE ALGUÉM ELOGIOU E TE DEU A CERTEZA QUE VOCÊ PODERIA DESENHAR?

Espere aí, deixe eu pensar… acho que foi o primeiro. Eu o mostrei aos meus pais e aí eles ficaram assim bem surpresos, né? Eles falaram: "nossa, você fez isso?!" Eu perdi os primeiros desenhos, infelizmente eu não sei onde eles foram parar, mas eu lembro que a última vez que eu peguei neles eu pensei assim: poxa, como é que as pessoas achavam isso legal? (RISOS) É porque a gente vai estudando, buscando e vendo novas técnicas... A partir do primeiro desenho eu passei a perceber que gostava, e os meus pais sempre incentivaram, fato que me motivou a continuar. Depois eu mostrei os desenhos para os colegas e eles disseram: “Poxa, que legal! Continue”. Atualmente, não me acho uma desenhista de primeira. Acho que ainda preciso evoluir muito ainda.





CIDA, VOCÊ JÁ HAVIA ESTUDADO TÉCNICAS DE DESENHO ANTES DE INGRESSAR NA UNIVERSIDADE?

Então, eu nunca frequentei um curso, apesar ter muita vontade. Mas, por falta de condições financeiras isso não foi possível. Mas eu fui atrás. Num primeiro momento eu desenhava por intuição. Só que depois eu percebi que precisava evoluir, porque o meu conhecimento já tinha meio que se esgotado ali. Sendo assim, me vi diante da necessidade de ir atrás de novas técnicas, de novas formas de pintura. Então, eu passei a pesquisar, porque você sabe como é: computador mesmo eu só tive a partir dos 14 anos. Quando meu pai conseguiu comprar um computador para a gente eu passei a pesquisar, a assistir vídeos e a ver alguns sites que traziam novas técnicas e novas formas de representações. E foi aí que eu descobri que a minha paixão mesmo é pintar com lápis de cor. Eu tenho muita vontade de desenvolver a técnica de pintura com tinta mesmo, mas no presente eu quero mesmo é desenvolver a técnica do lápis de cor. Eu vejo algumas artistas e eu digo: “gente, meu Deus!, eu quero chegar a esse nível”. Os mundos da arte e do design são maravilhosos. Você encontra várias formas de representações. É algo que realmente gosto e me move.


Esse é um desenho que apresenta elementos da natureza. Ultimamente tenho visto ensaios fotográficos que se utilizam desta temática, a relação do homem com a natureza. E as fotografias que de fato me levaram a buscar representar essa harmonia entre o homem e ou mulher com elementos da fauna e flora nos meus desenhos foram a de um fotógrafo chamado Predrag Pajdic. Aqui busco equilibrar a beleza de ambos. As borboletas como na maioria das vezes é utilizada para representar a busca pela liberdade e a transformação espiritual. Muitos dos meus desenhos são retratados com pouca ou nenhuma roupa. Isso é uma forma de preservar a expressão corporal e em alguns casos o movimento do mesmo e indicar que ali estou colocando o ser na sua forma natural, despindo seu corpo, retirando as futilidades para focar naquilo que realmente deveria ser preservado e cuidado, que são os nossos sentimentos. A nudez corporal para mim não é tão importante, ou profunda quanto a nudez da alma, não vejo muita surpresa em um corpo nu. O que há na alma daquele corpo sim, é complexo. Quando há muita roupa, normalmente são desenhos voltados mais para a moda, que algumas vezes eu faço, já que foi assim que comecei, e é algo que gosto de fazer também. (Cida Santos)











TEM ALGUÉM QUE INFLUENCIA VOCÊ, OU NÃO?

Têm pessoas que me inspiraram a continuar, porque têm momentos em nossas vidas que a gente pensa em parar por causa das dificuldades. Teve um tempo que eu passei um período sem desenhar, e aí eu acho… foi mesmo por perceber: “poxa, eu gosto disso!” Porque, antes, meu sonho era ser cantora. Eu tinha a ilusão que eu tinha a voz boa (muitos risos). Eu tinha a ilusão que minha voz era boa, então eu queria ser cantora, mas aí, quando descobri o desenho, e devido a algumas coisas que aconteceram em minha vida, eu parei por alguns meses - por falta de inspiração mesmo, de dizer: “nossa, não está saindo nada…” Alguns problemas financeiros em casa, os problemas aumentando, aí a pessoa fica naquela coisa: “poxa, não tenho mais inspiração para desenhar”. Depois eu fui percebendo que é uma coisa que me liberta das complicações, dos momentos ruins. Quando eu me debruço sobre uma folha e começo a desenhar é um desabafo que eu faço, é uma forma de desabafar e conversar porque eu não consigo me expressar direito com as palavras. Então, eu prefiro mesmo me expressar através do desenho. Mas quando eu entrei na universidade fiquei mesmo bastante tempo desmotivada a continuar a desenhar. Aí foi quando eu conheci meu namorado e ele me incentivou… ele me incentiva muito, muito mesmo. Ele sempre está ao meu lado e em momento nenhum… porque, para mim a palavra liberdade é sagrada, sabe? Eu sempre procurei relações - até mesmo nas amizades e em relacionamentos amorosos - em que eu tenha liberdade. Porque eu acho que o que move o ser humano é a liberdade. Se você se sente preso, ou prende alguém, ali você ceifa toda uma trajetória, todo um sonho que você quer para si. Então, ele nunca, em momento nenhum, me fez sentir presa. Ele sempre está ao meu lado dizendo: “olha, desenha!”. Ele até me dá uma bronca quando eu não estou desenhando: “cadê o desenho!?” Quando ingressei na universidade eu passei um bom tempo desmotivada; desenhava assim… mas não era com aquele entusiasmo. Então, digamos assim, eu tenho pessoas que me motivam e ele, amigos meus, minha família e principalmente meus pais [me motivam] sempre mais. Eu sempre digo aos meus amigos da universidade que lá eles são a família que cuida de mim, porque depois que eu fui morar lá passo um bom tempo sem ver meus pais. Eles estão sempre do meu lado dando conselhos. Graças a Deus, as pessoas e os amigos sempre estão do meu lado me incentivando. É isso, essas pessoas que estão ao meu lado são minha influência, e, por todo o carinho que dedicam a mim, sou muito grata a elas.

Esse desenho foi construído no ano passado - lembro-me que em meados de novembro. Eu tinha feito apenas a figura feminina, unicamente ela. Porém, sempre que o visualizava sentia que faltava algo... Ontem, ao esboçar o próximo desenho, me peguei olhá-lo novamente, ele possui um significado importante para mim, a inclinação de sua cabeça, as cores, seu olhar, tudo está aí porque no momento que peguei na folha para fazer aquilo que seria mais um estudo, deixei transbordar para o papel meus sentimentos. Uma mente turbulenta em meio a um mundo que não colabora para o contrário, mas possuo coisas que me acalmam, alguém que apazigua minha alma... Era isso que faltava, um elemento que represente esse algo e esse alguém. Então recorri a um inseto que gosto muito, que para mim é repleto de significados, a borboleta. Estava resolvido o mistério (risos). Escolhi como cor o azul, por ser uma cor que transborda calmaria, profundidade, uma cor mais espiritual... No desenho ela vai ao encontro daquele olhar perdido e cansado. Sua cor contrasta com as cores do turbante - quentes, agitadas... Quando conclui a borboleta e o peguei novamente, senti o desejo de escrever algo sobre: “Era sua calma em meio a uma alma tão agitada... Roubava seus sorrisos em meio à grande tristeza... Não deu a liberdade, pois não a tinha como prisioneira, mas a fez enxergar aquilo que o mundo insistira em ocultar de seus olhos...” Isso resume tudo. (Cida Santos)









CIDA, SEU DESENHO É PLANEJADO OU ELE É MAIS INSPIRAÇÃO?

Atualmente, eu estou buscando mais a inspiração. Eu tenho visto muitas fotografias e, a partir delas, eu começo a criar, a recriar, a fazer minhas leituras daquelas fotografias. Porém tem um pouco de planejamento, por influência do curso mesmo. Normalmente, eu gosto de pegar as expressões faciais, eu gosto de fotografias em que quem está sendo retratado olha diretamente para o observador ou para fora da fotografia. Eu gosto muito dessa coisa do olhar, aí tento retratar da melhor forma isso. Eu acho que eu preciso evoluir muito para poder trabalhar melhor essa coisa do olhar, do olhar profundo e pensativo. As pessoas sempre perguntam se tem alguma coisa de mim nos desenhos, e eu respondo que sim, que inconscientemente eu sempre coloco alguma coisa, algum olhar. Normalmente eu sou uma pessoa assim, que está sempre longe. Até nas aulas eu peço perdão aos professores mentalmente, porque eles estão lá explicando e eu começo a viajar. Mas, voltando aos desenhos, a técnica que eu utilizo é o lápis. Geralmente, eu gosto de cobrir com a caneta os contornos, e deixar os contornos explícitos, mas o meu traço é um pouco mais leve, então o contorno não é muito pesado. Atualmente eu estou procurando a tinta guache. De um lado eu não quero deixar o lápis de cor de fora, mas é que eu preciso ir avançando tecnicamente.

VOCÊ CONFESSOU QUE GOSTA MUITO DE MÚSICA. O QUE É QUE VOCÊ OUVE?

Quando estou desenhando gosto muito de ouvir músicas. Gosto especialmente de ouvir uma banda chamada Nightwish, que é uma banda de metal sinfônico. E essa junção entre a música clássica e essa coisa um pouco mais agressiva do rock me agrada muito. Eu acho o som do piano maravilhoso, e eu queria aprender a tocar esse instrumento. Eu gosto de ouvir Mozart, Beethoven… tem a galera nova que gosto muito, como Yann Tiersen e Yiruma… não sou muito de entender, mas pego as playlists de músicas clássicas e começo a ouvir… gosto muito também de MPB… também tem um cara, Sérgio Sampaio, que até foi o meu namorado que apresentou, e que eu gosto muito. Eu nunca tenho um cantor preferido; eu tenho estilos.







CIDA, O QUE É QUE A UNIVERSIDADE VAI FAZER POR SEU TRABALHO?

O curso vai me ajudar muito a desenvolver os meus projetos futuros, me diferenciar no mercado. Entender melhor questões projetuais, coisas que eu não possuía ideia de como fazer e agora consigo entender melhor, porém ainda tenho um longo caminho pela frente. Mas você percebe facilmente a diferença dos trabalhos pela questão teórica, porque você estuda teoria da gestalt, percepção visual, questões de cores, semiótica, enfim, coisas que parecem simples, porém não são - não pelo menos para mim -, e que fazem toda diferença. Então, tem toda uma teoria por trás, e eu creio que isso vai me ajudar muito a desenvolver de forma mais fluida. Porque eu acho que a universidade, apesar de todas as dificuldades, é o lugar para aprender, é a chance que você tem de reunir referencias e maturidade para lá fora dar continuidade aos estudos, o designer nunca para de estudar, aliás muitas outras profissões são assim. O que importa mesmo é o seu engajamento objetivando avançar na profissão, porque não adianta você… a gente tem que fazer bem, porque a gente está fazendo para pessoas, então não adianta chegar e dizer simplesmente que vai fazer algo apenas por fazer, a gente tem que fazer com segurança para que as pessoas sintam essa segurança em seu trabalho. Então eu acho que a universidade vai me ajudar muito e de alguma forma, mas é preciso buscar. É como minha professora fala: “na sala de aula é de 10 a 20 por cento. 80 por cento é a gente mesmo, buscando, estudando… procurando desenvolver projetos por fora mesmo. Eles [os professores] dão aquelas coisas, mas não dão tudo, e a gente é quem tem de correr atrás de alguma maneira, pois não adianta ficar esperando que as coisas caiam do céu. Entendo que a universidade está me ajudando muito, até mesmo nessa questão de maturidade e responsabilidade, nessa coisa de eu entender as diferenças entre as pessoas. A universidade te ensina a conviver no meio de pessoas totalmente diferentes, com pensamentos complexos, e mesmo assim tolerantes. Porque o que mais a gente vê no mundo é a intolerância, tanto por questões políticas, religiosa ou até por diferenças de pensamentos. As pessoas não conseguem sentar para conversar. Elas gritam, elas preferem ir atrás da violência. A universidade está servindo também como um meio de observação, porque eu gosto muito de observar o comportamento das pessoas, porque eu acho que, ao observar o seu comportamento e os de outras pessoas você percebe em que você precisa melhorar.

E EM RELAÇÃO A CAMPO DE TRABALHO, ONDE ATUA O PROFISSIONAL DO DESIGN GRÁFICO?

A gente trabalha em diversas áreas da comunicação visual, como o meio editorial, design de interface, desenvolvendo sites, no cinema (desenvolvendo animação)... Eu mesmo tenho muita vontade de desenvolver animação, mas para isso vou precisar ir atrás de outros cursos ...







HÁ ALGUMA RELAÇÃO ENTRE DESIGN GRÁFICO E FOTOGRAFIA?

Sim, nosso curso tem uma matéria de fotografia - e eu estou muito feliz com isso, quero pegar logo essa matéria (RISOS). Tem muito essa coisa da fotografia porque a gente trabalha com comunicação visual… a forma como a gente vai representar mesmo nossos projetos… a fotografia está muito presente também. Eu particularmente a utilizo muito para estudar proporção, jogo de luz e sombra...


Eu estava assistindo o filme Para Sempre Alice quando pensei nesse desenho. Pensei mais precisamente numa cena em que a personagem central responde uma pergunta feita por sua filha, que não me recordo no momento, mas a fala foi a seguinte: "Quando eu era bem nova, na segunda série, minha professora falou que borboletas não vivem muito, algo em torno de um mês, e fiquei tão chateada... Fui para casa e contei para a mamãe. E ela disse: ' É verdade. Mas elas têm uma linda vida'. E isso me faz pensar na vida da minha mãe, na da minha irmã. E, de certa forma, na minha vida." Esse fragmento foi retirado do site "mensagens com amor". Na historia a protagonista havia perdido sua mãe e irmã num acidente, e ela estava sofrendo de Alzheimer precoce. Ouvindo aquilo, passou um filme pela minha cabeça, comecei a refletir em como aqueles que marcam nossa vida, aqueles que possuem uma alma admirável, muitas vezes se vão de forma tão rápida. Eu que sei que, por mais doloroso que seja, devemos lembrar-nos deles como borboletas, que mesmo frágeis e passageiras, embelezam nossas vidas, são profundas para nós, nos encantam em tudo que fazem, e as lembranças positivas é as que devem ser de fato recordadas, cada momento deve ser vivenciado da forma mais intensa possível. (Cida Santos)













EM QUE SUA PASSAGEM PELA UNIVERSIDADE VAI CONTRIBUIR PARA MUDAR SEU DESENHO?

Eu tenho pretensões de desenvolver o desenho digital. Não estou praticando essa técnica ainda porque falta recurso para comprar equipamentos. Mas o desenho digital é magnífico. A técnica digital é um meio mais prático de se desenhar porque economicamente é mais barato, querendo ou não, você não precisa gastar dinheiro com tintas, com papel, como pincéis… É um jeito prático de se trabalhar, porque você pode levar o desenho para onde quiser. Você tem uma mesa digitalizadora ali e um Notebook que você leva para o lugar que quiser. Então é mais fácil, pois você pode se deslocar com mais facilidade. Eu acho magnífico [o desenho digital], apesar de gostar muito do modo manual, eu sou muito fã do tradicional, mas é minha pretensão desenvolver a técnica digital, até porque as empresas requisitam mais isso, porque trabalhar assim é muito mais rápido e, querendo ou não, há maior segurança, na medida em que, quando um desenho está pronto, pode-se mandá-lo por e-mail. Mas hoje a gente sabe que há várias ferramentas tecnológicas que ajudam muito o profissional do desenho. Há vários desenhos que são iniciados manualmente, e depois são passados para o computador através de um software para que os mesmos passem por modificações e venham a ser pintados. Essa é uma visão de uma iniciante, então em alguns pontos posso estar equivocada, porém vejo a praticidade como um ponto forte do desenho digital. A tecnologia está aí para nos ajudar e está se desenvolvendo cada dia mais. Eu sigo vários grupos de pessoas que fazem desenhos digitais, e realmente é algo magnífico, são trabalhos incríveis, e em nosso país tem muita gente boa nessa área.

QUAIS SÃO SEUS PLANOS FUTUROS?

É como eu sempre falo, eu não tenho planos para fazer isso ou aquilo. Eu tenho um esboço do que eu quero para correr atrás. Meus planos mesmo é continuar meus estudos na universidade, conseguir um trabalho - até porque só estudar e não aplicar o que se aprende é complicado. Então, eu estou sentindo mesmo a necessidade de estar trabalhando num programa de estágio de meio período, que seja compatível com meus estudos, e que me permita desenvolver, aplicar o que estou aprendendo e evoluir cada vez mais. Assim que sair da universidade eu pretendo dar continuidade aos meus estudos, possivelmente com um mestrado. Minha intenção é fazer história, porque também é uma área pela qual sou muito apaixonada. Mas acho que primeiro vou focar, me aprofundar mais na minha área. Aqui em Sergipe, apesar de o mercado está crescendo, eu acho que vou ter que sair do nosso estado para estudar mesmo a fundo, procurar melhorar, evoluir, fazer outros cursos. Outra paixão que eu tenho, que surgiu dos desenhos, e que pretende desenvolver também é a costura. Eu costuro algumas coisas, parei por um tempo por causa da universidade, mas aos poucos estou tentando retomar porque é algo que eu gosto, acho muito interessante. Em relação à costura, eu gostaria de lembrar aqui da professora Neide, que é uma daquelas pessoas que, apesar do pouco tempo de convivência, se tornou muito importante para mim. Além de ótima profissional e ter me ensinando com muito amor algo que hoje faz parte das minhas paixões (costura), é uma pessoa incrível, sempre se preocupando com seus alunos. Ela percebeu minha paixão pelo desenho, e na época buscou me ajudar como podia, aliás, ela e outros dois que também trabalham no Senac. Tenho muito carinho por eles, e especialmente por ela, por esse carinho e preocupação materna que tem comigo. Mas meus planos para o futuro são basicamente esses: estudar, conseguir um emprego que garanta minha manutenção e que me garante amanhã ir para outro estado, onde eu possa aperfeiçoar meu trabalho. A Europa é be interessante, os profissionais de lá são… nossa! No Brasil os profissionais saem daqui, muitos alunos saem daqui da UFS e vão para São Paulo ou para o sul mesmo, e eles são bem requisitados porque são profissionais que de fato desenvolvem um bom trabalho. Então, eu pretendo... né? Eu quero e vou correr atrás, para com fé em Deus conseguir.

CIDA, A UNIVERSIDADE TE DEU UM OLHAR MAIS CRÍTICO SOBRE SEU DESENHO, OU NÃO?

Sim, a universidade me deu um olhar mais crítico, me abriu os olhos para que eu procurasse evoluir em muitos pontos fracos, como a cor. Uma das minhas maiores dificuldades é a utilização da cor, por ela ser complexa. Você representar sentimentos… enfim, qualquer coisa através da cor necessita de um olhar aguçado, precisa de um olhar mais treinado - eu diria assim. Então, na universidade tem uma questão crítica tanto na abordagem, bem como nas técnicas. Atualmente, estou um pouco parada, só estou anotando as ideias, como tem feito meus amigos. De fato, na universidade eu passei por um aperfeiçoamento. Na verdade, minha visão se ampliou mais nessa questão da técnica, até porque tem uma matéria que a gente fez, que é história da arte, e que é uma matéria incrível! - pois me fez conhecer novos artistas, ver novas técnicas, os períodos artísticos… é... tanto que eu falo para o meu namorado que preciso fazer essa matéria novamente no final [do curso], porque ela vai me ajudar muito. E a professora ensina com um amor incrível - ela é incrível, na verdade. Então, eu pretendo fazer a matéria novamente porque ela me ajudou muito a entender, a conhecer e a buscar novas técnicas. É tanto que atualmente eu estou querendo buscar novas técnicas de pintura com tintas, apesar de ser apaixonada pelo lápis de cor.m

COMO VOCÊ TRABALHA AS CORES EM SEUS DESENHOS?

Eu sou meio perfeccionista nos meus desenhos, então, é sempre problemático quando preciso utilizar cores e percebo que não fui feliz na combinação. Em relação às cores, eu procuro trabalhar mais… por exemplo, se eu quero que o meu desenho represente algo mais triste ou mais reflexivo, as cores tenderão a ser um pouco mais escuras - eu gosto muito de usar o preto para representar a melancolia, ou profundidade emocional. Mas eu estou até com uns desenhos aqui… (Cida mostra um desenho, diz que está usando Caravaggio como referência, e que sombra e luz são técnicas difíceis de se aplicar). Então, as cores têm por função representar as belezas naturais. Eu, por exemplo, gosto de representar as borboletas, gosto da variedade de cores que elas apresentam. Mas, ainda possuo muita dificuldade em utilizá-las de maneira segura.






QUAL É A SIMBOLOGIA DAS BORBOLETAS?

Elas representam a questão da mudança, da evolução do ser humano, dessa coisa de você transcender. E, por ter asas... toda vez que eu represento algo que possui asas eu quero mesmo me remeter à liberdade, que é algo que desde pequena eu sempre prezei, sempre procurei preservar isso na minha vida - essa liberdade tanto de pensamento quando a de avançar mesmo. Então, é basicamente isso, eu gosto da borboleta porque ela tem essa coisa de evoluir e de ser livre, apesar de [a liberdade] durar tão pouco. A borboleta representa uma coisa intensa. É difícil ter alguém que não goste da borboleta. Mas é basicamente isso, eu gosto dos elementos da natureza, dessa coisa de… Eu vi uma série de fotografias que representam a relação do homem com a natureza de forma harmônica, e então isso me inspirou bastante a representar cada vez mais os elementos da natureza. Eu gosto também dessa questão do olhar, desse olhar que vai para fora ou para quem está observando.

SEUS DESENHOS RETRATAM MUITO AS PESSOAS DE PELE ESCURA, NÃO É?

Sim, porque inicialmente eu desenhava e pintava muito as mulheres mais brancas; nunca fui de desenhar as mulheres negras. Eu parei para pensar assim: “poxa, quero me ver mais!” Eu acho que me deixei influenciar pelas coisas que eu via dos negros nos desenhos. Depois eu olhei assim e disse: “poxa, eu posso fazer isso, eu posso contribuir para que a gente se insira mais nos meios de representações”. Não só naquelas representações que mostram o negro acorrentado, como uma forma de manifestação, mas também mostrar o negro como um ser humano, como qualquer outro que possui beleza, que possui sonhos, que pode sim estar sendo representado em uma pintura que mostre a relação do homem com a natureza - sem necessariamente estar falando sobre a cor dele. Então, mostrar a pessoa... Ali não é preto nem branco; é uma pessoa. Eu quero que as pessoas saibam que não importa, que o negro pode ser representado da mesma forma que um branco. Meus irmãos mesmo, eu sinto que eles ficam bastante incomodados quando estão assistindo comerciais e percebem que não tem um negro ali. A gente só é representado mais no dia da Consciência Negra, em momentos específicos, em situações em que são abordados temas específicos. Parece que a gente… se for num comercial que fale sobre beleza, a gente deixa feio - então não podem [nos] mostrar. Eu gosto de representar o negro, eu gosto dessa coisa de cabelo cacheado. Eu sempre alisei os cabelos - não me arrependo. Eu gosto de mudar muito, gosto dessa coisa de mudança, porque eu vejo muitas meninas, e até crianças que desde nova não se gostam, sabe? Eu nunca sofri preconceito explícito, nunca chegaram a me bater pelo fato de eu ser negra, mas a gente percebe olhares diferentes em alguns ambientes. Mas eu sei que têm pessoas que sofrem coisas mais pesadas com relação a isso. Então, eu gosto mesmo… eu quero mesmo representar o negro como uma pessoa normal, destacar a questão da beleza, a questão do refletir sobre a vida, de você olhar além dos muros, e de buscar evoluir como ser humano. Atualmente eu estou gostando de alguns desafios que estão sendo passados para mim, porque, como eu gosto mesmo [de desenhar] sem cenário nem algo do tipo, as pessoas adoram passar desafios.

Eu pretendo ter o desenho não só com robe, mas eu desejo desenvolver… é porque é assim: eu sou uma pessoa que não penso em trabalhar apenas numa área. Eu quero trabalhar na área editorial, ilustrações… enfim, me envolver em muitas outras áreas, como a costura, que eu gosto muito. Eu sempre vou descobrindo coisas e adicionando aos meus planos. Todo início de ano eu tenho a mania de esboçar planos, verificando se eu posso prosseguir com os planos do ano anterior, e pensar também o que posso acrescentar ou modificar. A ideia é refletir sobre o que eu posso melhorar como pessoa, porque é assim: eu acho que, quando você quer ter um convívio bom com as pessoas, você não pode apenas querer ficar só corrigindo os outros. Você também tem que se corrigir por dentro. Eu nunca estou satisfeita comigo mesma. Eu estou sempre procurando analisar meu comportamento, as coisas que eu falo, as coisas que eu penso, como eu estou tratando as pessoas ao meu redor para procurar sempre melhorar - acho que isso é importante para o meu crescimento, porque por mais que você… você pode ler quantos livros for, você pode ter a inteligência que você quiser, mas se você não for um ser humano digno de convívio, não adianta de nada. Eu acho que a pessoa não precisa ser só inteligente. Eu gosto de separar inteligência de sabedoria. Ela [a pessoa] tem que ter os dois: tem que ter a inteligência, mas saber ser humilde na forma de agir. Então, eu busco muito isso… Eu conheço uma menina que pinta também de forma magnífica, e ela é extremamente inteligente, mas é também muito humilde. Nem parece ser aquela… eu fico [dizendo]: "gente!"… eu sou apaixonada pelas pinturas dela, pela inteligência dela, e principalmente por essa humildade que ela tem, sabe? Não quero ser melhor que ninguém… O que ela mostra nas atitudes dela… para mim o ser humano tem que ser assim, até porque atualmente a gente está percebendo que as coisas estão cada vez piores, as pessoas estão cada vez mais intolerantes, está muito complicado para se viver. Quando você para para olhar, quando você para e ler as notícias você fica… sabe? Que mundo é esse?! A cada notícia que leio eu custo a acreditar nas coisas que eu vejo: o comportamento das pessoas, a violência cada vez mais...

VOCÊ RECEBEU BOA ACOLHIDA AO CHEGAR NA ACADEMIA?

Lá as pessoas são bem… apesar da competição ser aparente, de as pessoas não terem uma boa relação… você percebe quando a amizade é falsa ou verdadeira, para se aproveitar. Mas é assim, com relação ao meio em si eu não tenho muito a reclamar, não. Graça a Deus, essa questão de preconceito… Às vezes a gente ouve alguns comentários estranhos, mas enfim, a gente tenta relevar na medida do possível, porque eu sou uma pessoa que foge de problemas. Às vezes eu converso, quando uma pessoa faz alguma coisa… às vezes ela não faz por mal. Mas alguns tipos de comentários incomodam. Às vezes nem está na cabeça da pessoa ofender, mas, por questão cultural mesmo, as pessoas acham que podemos estar com alguns comentários… O problema é que alguns comentários incomodam um pouco, principalmente para mim, que sou uma pessoa que não gosta de problemas. Mas, na universidade eu fui bem aceita, os professores são ótimos, em especial esses que eu citei, né? Eu tenho amigos que eu sempre digo para eles que eu tive a sorte de os encontrar, porque são pessoas que, quando você está com problemas, elas estão ali para te ajudar. Elas sempre perguntam - eu passei um tempo com problemas de saúde e elas sempre queriam saber: “ah, você está bem? Tomara que você volte logo!”. Então, são pessoas… Em relação a acolhida, sempre vai existir uma ou outra pessoa que vai se sentir incomodada e vai te incomodar, mas isso é normal. Mas, no geral mesmo, fui muito bem acolhida. Essa questão de querer me encontrar é algo de mim mesmo. Eu passei por uma mudança drástica. Eu sai da casa dos meus pais - eu nunca tinha saído. As poucas vezes em que eu fiz isso foi para passar quatro dias na casa de minha madrinha. Então, eu nunca tinha saído de casa para morar fora nem em outro lugar. Como eu já falei aqui, eu passei a conviver com pessoas totalmente diferentes. Têm pessoas daqui, mas há também gente de outros estados… É incrível como você encontra com pessoas com culturas totalmente diferentes. E, por morar com meninas maravilhosas, a gente tem um convívio ótimo, e, de alguma forma a gente está crescendo, porque são pessoas diferentes, com culturas e comportamentos também diferentes. Sendo assim, eu tenho que amadurecer para essas questões, para ser tolerante… Enfim, eu acho que a dificuldade maior é com relação a mim mesma, porque eu tive problemas de autoestima, sempre tive a autoestima meio assim - meio baixa. Por isso, quando eu entrei [na universidade] isso se agravou um pouco e eu passei a ficar meio no meu canto. Eu não conseguia ter confiança na hora de falar, nem na hora de mostrar meu trabalho, muito menos na hora que as pessoas pediam para eu mostrar meus desenhos - eu ficava só enrolando. Tem gente que até hoje me cobra. Eu fico [pensando] assim: "poxa, mas eu não sou tão boa, eu preciso evoluir". Mas eu fui bem acolhida. É como eu falo, tem um ou outro que tem certos comportamentos… mas, no geral, e graças a Deus, estou conseguindo prosseguir. Tem o cansaço, mas a gente tenta…

CIDA, VOCÊ AMADURECEU MUITO DEPOIS QUE FOI PARA A UNIVERSIDADE, NÃO É?

Sim, eu creio que amadureci em algumas questões! Eu diria que foi uma mudança muito brusca, porque eu era uma pessoa muito difícil de controlar, muito impulsiva, me estressava com facilidade, às vezes eu não ouvia tanto as pessoas, sabe? Tinha muito aquela questão: quando eu tinha um problema comigo, ou dentro de casa, isso logo me desmotivava, sabe? Eu não procurava ver aquilo como uma forma de… eu não era resiliente, como as pessoas falam. Eu não tinha aquela resiliência, não sabia me adaptar às situações. Quando entrei na universidade eu passei a comparar o meu comportamento com os das pessoas, a entender que nem todo mundo é… na verdade, ninguém é culpado pelos meus problemas, então, não há necessidade de eu ser arrogante, é… não sei, até como forma de se defender... às vezes você quer se defender das coisas externas, e às vezes você se defende de maneira errada. Eu tenho muito isso de me defender me trancando… Às vezes meus amigos iam atrás e eu não conversava. Hoje eu procuro conversar, porque quando você conversa, principalmente com pessoas que estão ali para te ajudar, você acaba organizando melhor seus pensamentos. Quando você se tranca em si mesmo você pode pensar qualquer coisa, pois não tem outra opinião. É muito complicado esse negócio de você estar se ouvindo, só se ouvindo (RISOS). Eu tenho muito a evoluir, claro, pois qualquer ser humano precisa sempre evoluir, mas, sinceramente, foi uma mudança assim… na questão de pensamento mesmo, de você olhar e perceber que as pessoas são muito diferentes. Eu estava me afastando das pessoas, por achar que as pessoas são ruins e falsas… Mas depois eu me dei conta que eu também erro. Eu erro, e, se for para me afastar das pessoas por seus erros, eu também vou ter que me afastar de mim mesma. Então, eu passei a aceitar melhor os erros das pessoas. As pessoas erram! Infelizmente, tem aqueles que erram demais e não assumem, e fazem mal demais a outras pessoas. Acho que eu passei a aceitar mais essa questão do ser humano - da fragilidade. E na vida é assim mesmo, a gente só aprende errando. Mas é isso, eu ainda estou tentando melhorar na questão da autoestima, porque às vezes eu estou bem… Noutras vezes eu fico: “poxa, não sou boa nisso, não sou boa naquilo!”...

Fiz esse desenho inspirado no ser humano lindo que é minha irmã Mara. Utilizei-me de elementos que ela gosta, e de elementos que de alguma forma me remetem a ela quando os vejo. Ela é meiga, gosta de tudo que é delicado e calmo. Tem uma alma linda. Ao mesmo tempo em que é misteriosa, muito calada, difícil desvendar o que se passa em sua mente (risos). O azul está aí, pois é uma cor que tem certo ar de profundidade, e é dessa forma que a vejo, como uma pessoa profunda demais. Vejo que a música instrumental, especialmente as tocada por violino são suas preferidas. No canto superior esquerdo há alguém aprisionada, que ao ouvir o som que sai desse belo instrumento, passa a sentir-se livre. Não digo que é assim que ela se sente, mas é assim que a vejo. (Cida Santos)








COMO SUA MÃE E SEU PAI ENCARARAM O FATO DE VOCÊ NECESSITAR FICAR LONGE DE CASA PARA ESTUDAR?

Nossa!, meu pai, por mais que esteja preocupado, ele não é de demonstrar muito. A gente sabe que ele está preocupado, mas ele não é de demonstrar muito. Ele sempre foi de demonstrar confiança. Como ele tem dois filhos que são casados, e que são do seu primeiro casamento - e desse casamento com a minha mãe eu sou a mais velha -, ele sabe que eu sempre tive uma maior carga de responsabilidade, por cuidar dos menores e tudo o mais. Então, meu pai sempre disse: "Se é isso mesmo o que você quer, corra atrás, porque você só vai conseguir assim". Ele, desde muito novo também, sempre se jogou no mundo para conseguir as coisas que ele tem hoje - que é pouco, mas, comparado ao que ele tinha antes, é uma riqueza imensa. Então, ele sempre foi muito de enfrentar o mundo com muita garra, porque poxa!, as coisas que ele já enfrentou na vida... e ele ser o que ele é, um ser humano honesto… E mainha é aquela coisa ... muita preocupada. Mainha é também muito guerreira. Ela dizia: “Minha filha, como é que você vai ficar lá?!" No início foi meio difícil ela aceitar a necessidade de eu morar longe dela. Mas depois eu expliquei: ‘Não mainha, é aqui perto! Eu vou estar correndo atrás de um futuro melhor!’. De alguma forma, eu vou conseguir cumprir as coisas que prometi para eles, porque eles enfrentam muita coisa na vida para garantir nossa existência. Eu pretendo - e eu espero que consiga - dar um pouco de paz para que eles não tenham que viver apenas fazendo contas, se preocupando se vai ter dinheiro para saldar os compromissos da casa. Eu tenho muita vontade de dar uma vida melhor para eles, para mainha fazer as viagens que ela tanto sonha. Meu pai também é apaixonado por avião, e meu sonho era levar ele em museus. Eles sempre me apoiaram, mas sempre disseram que o que eu quisesse teria que correr atrás. A preocupação maior deles era para que eu não deixasse me influenciar por coisas ruins. Tem aquela preocupação, mas eles sempre estiveram e estão ao meu lado, e sempre ligam para mim. No início, eles tinham preocupação em ter que pagar para que eu fosse e voltasse da universidade em Aracaju todos os dias. Eu tinha que escolher, ou trabalhar para os deslocamentos para Aracaju… porque para você ir para a universidade todos os dias, perdendo uma hora, uma hora e meia e ainda trabalhar… você não aguenta, não tem como aproveitar, porque… Eu admiro quem trabalha e estuda, mas a gente percebe que a dificuldade é grande. Como estou começando agora, não tenho nada construído com relação a emprego nem nada assim, eu quero crescer para ajudar a meus pais. Em virtude disso, eu tive que optar em morar fora do ninho. Mas é algo assim que enriquece a gente e que me faz crescer. Eu sei que se eu continuar me esforçando, continuar estudando uma hora ou outra isso vai retornar, então eu tenho, eu procuro sempre pensar dessa forma, principalmente nos momentos mais difíceis - é aí que eu penso que um dia vou ter a devolução disso. Espero que o resultado seja bom, que eu possa ajudar meus pais. Acho que o que me move mesmo é a questão de querer ajudar meus pais. Eles são a principal motivação. Tanto que eu falo que, por eles, eu quero ir mais longe, sabe? Porque realmente eles enfrentaram muita coisa - e ainda enfrentam. Meus pais vieram de uma família muito pobre, então, o que eles têm é porque correram atrás. Eles não nasceram em berço de ouro nem nada, então eles correram e correm atrás e, de algum modo, isso contribuiu para eu ser quem eu sou, porque eles são pessoas muito honestas. Eu agradeço muito por ter pais honestos, porque a pior coisa é você ter vergonha dos seus pais. Admiro muito nas pessoas o caráter, e meus pais têm caráter e são exemplos a se seguir. Meus irmãos também, graças a Deus têm essa coisa de também retribuir para eles tudo isso.

OBRIGADO POR VOCÊ SE DISPOR A CONTAR UM POUCO DE SUA HISTÓRIA PARA MIM

Eu que agradeço por você apreciar de alguma forma meu trabalho, agradeço também pelo convite e pela oportunidade de falar e pelo carinho e toda a atenção. E dizer que continue valorizando a cultura de Lagarto, cidade tão sofrida, mas que possui talentos incríveis (não me incluindo, ainda sou muito pequena! (risos)0, e profissionais que tentam preservar o que há de bom em Sergipe como um todo. Poucas são as pessoas que a gente percebe que querem ver o crescimento alheio, e você é essa pessoa. Muito obrigada!


Agradecimento: Aparecida Souza dos Santos (Cida)
Fotos: Do arquivo pessoal de Cida
Fotos; Eduardo Bastos
Todos os desenhos e pinturas expostas nesse artigo são de autoria de Aparecida Souza dos Santos (Cida)

domingo, 30 de abril de 2017


APENAS UM EPISÓDIO DA VIDA DE UM PADRE QUE PRATICAVA O EVANGELHO EM SUA ESSÊNCIA

Foi um tempo de aflição aquele em que Padre Almeida substituiu por um breve período seu colega Mário Rino Siviere na Paróquia de Nossa Senhora da Piedade de Lagarto. Nosso município tinha à frente do executivo um prefeito que encarnava todas as características de um coronel, de um ditador mesmo. As marcas do mandato Artur de Oliveira Reis eram o desmando administrativo, as perseguições sem tréguas aos adversários e a desvalorização permanente do funcionalismo público. Nesse momento de sua administração, Artur demitiu inúmeros funcionários, inclusive muitos professores, sem que lhes fossem pagos os direitos trabalhistas. Para piorar ainda mais a situação, o salário de um professor foi sendo rebaixado até atingir 25% do salário mínimo (isso mesmo: vinte e cinco por cento do salário mínimo em vigor à época - a título de comparação, se Artur fosse o prefeito de Lagarto hoje (2017), um funcionário da prefeitura estaria recebendo por mês o equivalente a R$ 234,25).

Diante desse quadro, Padre Almeida, que era um religioso possuidor de uma formação social e humanitária, de imediato não só se colocou ao lado dos demitidos, como fez todo um movimento na cidade, e até organizou uma campanha para arrecadar alimentos - uma vez que os servidores também estavam​ há três meses sem receber salários​. Por sua vez, os professores municipais se uniram a um Grupo de Jovens existente na cidade, para juntos promoverem uma manifestação durante uma procissão que percorreria as principais ruas da cidade à noite, logo após a missa. Os organizadores decidiram ainda sair com cartazes e faixas, com frases que denunciavam as arbitrariedade e as demissões, assim como outros problemas vividos pela sociedade Lagartense - e que eram resultado, também, do desastre administrativo experimentado naquele momento pela sociedade.

Como já era de esperar, Padre Almeida apoiou e orientou desde o primeiro momento a realização da manifestação idealizada pelos fiéis. A vida sacerdotal de padre Almeida se confundia com seu envolvimento com as causas sociais. Padre Almeida era um religioso que vivia e praticava o evangelho em sua essência. Ele pescava almas, mas era ele também, acima de tudo, um ser político que ensinava os homens a irem à luta, a cobrarem direitos. Desde que chegou em Sergipe vindo de Sobral no Ceará, padre Almeida sempre esteve em comunhão e ao lado dos humildes, dos perseguidos e necessitados. Ele fundou associações de moradores e de agricultores, criou cooperativas e lutou sem descanso para garantir a fixação de milhares de famílias no campo. Almeida também fundou e dirigiu escolas em diversas cidades do nosso estado, para garantir assim formação libertadora para pessoas comuns e para os filhos dos trabalhadores. 

Seguido orientações do pároco da cidade, os componentes do grupo de jovens, os professores, boa parte dos demitidos e os fiéis mais assíduos começaram a encher a praça da matriz assim que a noite dominou por completo a cidade. A expectativa estava no ar. Seriam​ uma procissão e uma novena diferentes. Seria provavelmente a primeira vez em que uma​ classe oprimido usava o recurso da força da religião, com o apoio incondicional da autoridade eclesiástica da cidade, para expor de forma inusitada seu sofrimento à sociedade. Aquilo não deixava de ser um ato de ousadia, de afronta e desafio público ao dublê de coronel que comandava com mão de ferro a prefeitura de Lagarto.

Tudo estava pronto para a realização da novena e da manifestação - na praça Nossa Senhora da Piedade, o número de fiéis superava em muito aquele que costumava frequentar as missas durante a semana. De repente, quanto os relógios marcavam 18h30, as luzes da igreja e das ruas se apagaram. Ninguém contava com um blecaute àquela hora, muito menos num momento especial como aquele. Não era noite de lua, e por isso tudo ficou escuro feito breu. As pessoas ficaram um pouco em dúvida: o que fazer agora, esperar o restabelecimento da luz artificial, ou tomar as ruas assim mesmo? Decidiu-se pela segunda alternativa, pois, naquele momento, uma notícia passou a circular na praça, dando ainda mais sentido à realização daquela novena. O que se ficou sabendo é que o prefeito era quem tinha ordenado o desligamento das luzes da cidade. 

Essa notícia provocou ainda mais indignação e deu mais ânimo aos presentes. Decidiu-se que a procissão/manifestação tomaria as ruas com as luzes apagadas mesmo. Padre Almeida manteve a serenidade, a calma que lhe era peculiar, mas reuniu ali mesmo seu rebanho e agiu com determinação, cuidando para que fossem providenciadas ainda mais velas. Logo em seguida, a procissão tomou as ruas. Carros foram estacionados estrategicamente nas esquinas e as luzes dos faróis passaram a cortar a multidão de fiéis em todas as direções, formando um contraste de rara beleza, fascinante de se ver! Agora a procissão parou por cinco minutos em frente à prefeitura, e as rezas e os cânticos passaram a ser entoados a plenos pulmões. A emoção se espalhou e dominou os presentes. Mulheres deixaram as lágrimas escorrerem livremente por seus rostos; homens contiveram a emoção travada na garganta. Era muito bonito tudo que se via e se vivia naquela noite em que as passagens do evangelho ganhavam verdadeiro sentido na voz de Padre Almeida.

A repercussão de tudo que foi protagonizado pelos fiéis e pelos funcionários municipais naquela novena memorável foi grande, e as reações ao movimento conduzido por Padre Almeida e pelo Grupo de Jovens não tardaram. Na segunda-feira que procedeu o ato, o prefeito municipal convocou duas professoras para que as mesmas comparecesse em seu gabinete (elas haviam participado ativamente do ato, mas não tinham responsabilidade direta por sua organização, já que o mesmo fora convocado pelo Grupo de Jovens). Quando as duas mulheres pisaram os pés na porta da prefeitura, foram recebidas com berros e xingamentos. O chefe do executivo colocou o dedo em riste - ora na cara de uma, ora na cara da outra. A prefeitura estava cheia de gente, mas o prefeito não baixou o dedo nem a voz sequer por um segundo quando deixou bem claro para as professora que não queria terroristas nem comunistas​ prestando serviço para ele. Indiferente aos argumentos de uma das professoras​ - que não se intimidou diante da grosseria do prefeito, e até tentou explicar, mostrar para ele no mesmo tom de voz que a intenção delas não foi a de prejudicar, mas sim participar de um movimento organizado pela Igreja -, Artur deu as costas e se dirigiu a uma das salas, onde ordenou à funcionária responsável que batesse a demissão daquela professora atrevida.

Para além de acirrar os ânimos entre o chefe do executivo e o funcionalismo público do município de Lagarto, esse episódio em particular transformou Padre Almeida numa pessoa má vista aos olhos dos que estavam no poder no município de Lagarto. Quando Padre Mário Rino Siviere retornou de sua viagem a Itália e Almeida foi nomeado para assumir a paróquia da Colônia Treze, esboçaram-se reações contrárias, e chegaram até mesmo a falar com o Bispo de Estância, Dom Bezerra Coutinho, que não admitiu palpites de terceiros na questão, alegando que, como a Igreja não interferia na política de Lagarto, ele - o Bispo - não aceitava interferências em questões da Diocese. E foi assim que Padre Almeida assumiu a paróquia da Colônia Treze - onde foi ensinar o verdadeiro sentido do evangelho, forjar novas consciências e saciar os que tinham fome e sede de justiça social.

(Eduardo Bastos)

sábado, 29 de abril de 2017

COM PENA DO POBRE DIABO QUE SE DISPÔS A TOMAR AS DORES DO PREFEITO OPRESSOR

Minha avó costuma dizer que pena é um sentimento a ser evitado a todo custo. Segundo ela, não devemos ter pena de quem quer que seja. Ter pena de alguém não vai mudar sua vida, muito menos​ contribuir para modificar o jeito como essa pessoa é, age e reage diante de​ algumas situações da vida. Em tom de brincadeira, minha avó, que hoje completou 96 anos, e que tem o coração mais bondoso do mundo, costuma dizer que pena é um sentimento que nem sempre​ é digno, e por isso devemos lembrar do ditado que diz que “no lugar de pena nasceu cabelo”.

Acontece que há situações na vida em que a pena domina nosso ser como algo inevitável, como uma reação natural e silenciosa a um quadro de pobreza cultural, moral e espiritual - um quadro em relação ao qual, em muitos momentos, é preferível calar a expressar a raiva ou o desdém que nos domina.

Pois bem, é de conhecimento de todos que moram em Sergipe que, durante a gestação do ex-prefeito Lila Fraga (2012-2016), o funcionalismo público do município de Lagarto passou por um de seus piores momentos. Para fazer frente a tantos​ desmandos​ administrativos e para cobrar direitos - como pagamento de salários​ em dia, reajuste do piso e melhores condições de trabalho - os educadores lançaram mão de formas de lutas possíveis e imagináveis: panfletagens, passeatas, carroceatas, ocupação do prédio da prefeitura e da câmara de vereadores, concentrações em praças da cidade e dos povoados, comparecimentos em missas e cultos em igrejas, e participações massivas​ em Gritos dos Excluídos - atos que costumam​ tomar as ruas de nossa cidade dia 7 de setembro, sempre com grande repercussão.

Durante esses atos e manifestações, um detalhe começou a chamar nossa atenção: a presença de um indivíduo de comportamento estranho - que não era professor nem ocupava cargo na prefeitura de Lagarto, mas que estava sempre ali no meio dos educadores, fizesse chuva; fizesse sol.

Na maioria das vezes aquele sujeito se comportava de forma discreta, acompanhava tudo ​com a cara emburrada, mas não esboçava nenhuma reação inconsequente. Em outras vezes, e sempre que se juntava por ali com um puxa-saco de sua laia, ele ficava a criticar e a zombar de quem estivesse ao microfone. Mas foi durante um episódio, que antecedeu a ocupação da câmara de vereadores de Lagarto, que aquele sujeito deu claros​ sinais de que poderia, sim, representar séria ameaça à integridade física de uma professora em especial - uma professora que ali na câmara de vereadores se destaca por dar ênfase a sua revolta contra os edis que demonstravam claramente que votariam a favor do congelamento dos salários dos educadores.

Naquele momento de grande apreensão, em que os professores e todos ali​ estavam com os nervos à flor da pele - haja vista que os educadores se viam diante da iminência de terem seus vencimentos (já defasados) congelados por mais um ano - um fato trouxe ainda mais preocupação. Aquele elemento, que vivia por ali sempre criticando a luta dos professores, tinha empurrado uma professora nas dependências da câmara, e ainda havia chegado a confidenciar a alguns presentes sua vontade de fazer algo para “dar um jeito” naquela professora mais afoita.

Felizmente, aquele momento de grande tensão chegou ao fim sem que o indivíduo cumprisse seu intento. Sua ameaça, no entanto, não podia, sob qualquer hipótese, cair no esquecimento. No início da noite posterior à desocupação da câmara de vereadores, eu e mais dois companheiros professores nos reunimos numa lanchonete da cidade para espairecer um pouco, falando amenidades e colocando o papo em dia. Na ocasião, um de nós tocou no assunto:

- Companheiros, vocês estão sabendo o que aquele elemento fez lá na câmara, não é? Ele ameaçou e até chegou a dar um empurrão em nossa professora. Precisamos ficar atentos. Não podemos permitir que aquele vagabundo toque sequer um dedo em nossa companheira, nem em qualquer um dos nossos. Pelo menos um de nós tem que ficar de olho nos movimentos daquele cara durante nossos atos, para evitar que ele se meta a besta e venha a investir contra uma professora ou um professor. 

Ficamos em alerta, mas não sei o que aconteceu com aquele elemento de cara fechada e comportamento estranho. O certo é que parece que ele não viu clima para cumprir sua vontade em atentar contra nossa companheira professora. Desconfio que, durante aqueles dias tensos, ele deva ter passado por uns dois minutos de lucidez, e aí sua consciência o alertou que agredir fisicamente um(a) educador(a) de Lagarto, em presença da categoria, poderia ser o pior negócio que ele faria em sua vida. O sopro de lucidez que aquele idiota deve ter tido por aqueles dias, com certeza, o livrou de uma boa enrascada.

Um dia a greve acabou e passaram-se pouco mais de um mês. Numa tarde de muito calor, logo após as 16h, eu calcei meu tênis e saí para caminhar. No momento em que deixei a calçada de minha casa, decidi que faria um percurso diferente. Quando passava em frente ao Colégio Nossa Senhora da Piedade e ao lado de uma pracinha que tem por ali, avistei aquele sujeito que tinha ameaçado nossa companheira outro dia lá na câmara de vereadores. Ele se encontrava sentado na beira do​ muro e recostado em uma das grandes do prédio do antigo Grupo Silvio Romero. O sujeito estava só - o colégio ainda não tinha dispensado os alunos -, e tinha à sua frente um desses carrinhos de alumínio, de pouco mais de um metro e meio de comprimento, e que são feitos sob encomendas para se vender pipocas. À sua direita pude ver ainda um tabuleiro de balas. Não parei de caminhar, mas constatei que a clientela daquele sujeito por alí seria mínima, e ainda tratei de fixar meu olhar mais alguns instantes naquela cena - porque precisava guardá-la na memória, e porque ela me ajudava a refletir​ sobre o quanto o ser humano pode ser estúpido. O indivíduo, por sua vez, demonstrou perceber minha passagem, colocou as mãos para trás, se apoiou ainda mais no muro e manteve o olhar perdido em algum ponto do chão (naquele momento ele deve ter lembrado de quando, em um dos nossos atos em frente à prefeitura, eu apontei as lentes de minha câmera em sua direção e tirei uma foto (fiz isso por entender que era importante ter uma imagem daquele indivíduo para, quem sabe, podermos vir a identificá-lo com mais facilidade perante as autoridades, caso ele viesse a agredir um de nossos militantes)).

Três dias transcorreram antes​ que eu voltasse a me deparar novamente com o cabra-safado. Agora era uma manhã de sol escaldante, ele estava apoiado no encosto de um banco tosco de um calçadão de nossa cidade e, ao seu lado, pude notar uma caixa de papelão com umas poucas laranjas - que ele oferecia vez ou outra aos transeuntes. Ele me viu e mudou um pouco. Possivelmente, meu semblante me denunciou ao pobre diabo, e ele compreendeu o motivo real de minha estranheza.

Igual a três dias atrás, eu estava mesmo surpreso. Afinal, eu constatava mais uma vez que o indivíduo que vivia perdendo seu tempo para acompanhar as greves e atos dos professores, que não se cansava de hostilizar os educadores nas ruas, e que chegara a empurrar e ameaçar uma docente dentro de uma casa legislativa era o mesmo que precisava vender churros e laranjas nas ruas para garantir seu pão de cada dia. Não que as formas por ele encontradas​ para garantir seu sustento se mostrassem indignas para mim. Pelo contrário, eu entendia de verdade que a labuta daquele homem era a única coisa a lhe garantir um pouco de dignidade na vida. Minha estranheza se devia ao fato de, até então, eu estar convicto de que aquele indivíduo certamente devia ser beneficiário de um CC gordo na prefeitura de Lagarto. Eu supunha ainda que ele poderia fazer parte daquele grupo de favorecido do gestor que - diziam à boca miúda nas ruas da cidade - tinha como única ocupação ir ao banco a cada fim de mês para passar o cartão. Afinal, quais outros interesse podiam​ explicar o comportamento daquele imbecil, e sua postura em estar sempre na defesa de um prefeito vagabundo e mal-intencionado?

Naquela manhã de sol abrasador eu saí a percorrer o resto do calçadão tomado por um sentimento de dó, de pena mesmo do elemento que aqui é meu personagem. Minha pena se devia ao fato de eu constatar que, antes de ser um homem necessitado, aquele indivíduo nasceu para ser bajulador e capacho do grupo político que despertou sua paixão dentro de Lagarto - grupo esse que também judiava pessoas de sua família e convivência afetiva.

Dias atrás, tínhamos ficado sabendo que aquele indivíduo teve um relacionamento, e até chegou a morar com uma professora que reside em nossa cidade. Em dias mais recentes, nos foi dado conhecimento que tal elemento também é filho de uma professora do município - filho de uma senhora que teve um problema grave de saúde (e até necessitou ficar afastada por meses), devido a contrariedades possivelmente relacionadas a problemas também no trabalho. Então, sabemos agora que aquele sujeito convivia no dia a dia com pessoas do próprio sangue, que eram tão exploradas e judiadas pelo gestor público quanto os professores e professoras que ocupavam ruas e prédios para cobrar seus direitos. Sendo assim, como explicar sua postura bajuladora? Como entender que aquele pobre diabo - que provavelmente não ocupou por muito tempo os bancos escolares, por preguiça ou por não ter interesse em ser alguém na vida através dos estudos - renunciasse trabalhar por manhãs e manhãs​ consecutivas para ficar destilando ódio contra homens e mulheres que sacrificaram muito na vida para adquirir conhecimentos (através de uma graduação, de uma pós-graduação ou de um mestrado), para poder oferecê-los à sociedade, e que naquele momento ocupavam as ruas apenas para exigir o que lhes era de direito?

Para compreender a postura daquele elemento é só lembrar que em Lagarto há uma doença que costuma afetar um segmento da ​população que se divide na paixão doentia por um dos dois grupos políticos tradicionais. O indivíduo contaminado tem sua paixão alimentada também pelo interesse em obter vantagens para si, e para um parente ou aderente, caso um ou outro grupo político esteja no poder em determinado momento. Então, esse indivíduo afetado por essa praga renúncia à capacidade de pensar por si mesmo, adquire cegueira político, fica incapaz de enxergar e admitir que seu político e o grupo ao qual segue são responsáveis pela corrupção e por outras práticas que contribuem para manter a sociedade no atraso, privada de direitos elementares​. Um indivíduo feito esse é um apaixonado que perdeu a razão até sobre si mesmo, e prefere levar a vida alimentando sua ignorância, a ter que admitir que a facção pela qual torce, e defende até a morte, era, mais que tudo, uma das responsáveis por condenar trabalhadores e trabalhadoras a passar meses em estado de penúria e privações - inclusive pessoas que eram sangue do seu sangue, e que viviam sob o peso da opressão, sobrecarregadas psicologicamente por não poderem fazer o que é mais caro para um(a) educador(a) de Lagarto: pagar suas contas em dias com o fruto do suor derramado ao longo de um mês no chão da sala de aula.