domingo, 21 de janeiro de 2018


O QUE SERÁ QUE PASSAVA NA MENTE DA MOÇA QUE CONHECE A RIQUEZA APENAS PORQUE ELA INVADE SUA CASA ATRAVÉS DAS TELAS DA TV E DO CELULAR?



Não faz muito tempo, integrei um dos grupo que percorreu a maioria dos mais de cem povoados existentes no nosso município. O objetivo desses deslocamentos era visitar e fotografar os prédios que abrigam escolas públicas nessas localidades para, com isso, formar um banco de imagens que pudesse ser usado quando fosse preciso mostrar à sociedade a precariedade da estrutura física das nossas escolas municipais.

Quem reside na cidade e raramente - ou nunca - vai a um povoado, jamais terá a noção exata da dificuldade que é trafegar pelas estradas esburacadas que ligam a sede do município ao resto do território lagartense. Dentro de um carro ou em cima de um moto, demora-se horas para se percorrer distâncias que, em condições normais, seriam facilmente vencidas em questão de minutos. É de se imaginar que as pessoas que moram nessas lugares vivam uma espécie de isolamento forçado. Distantes do que é perto, essas populações geralmente vivem e sobrevivem privadas e impossibilitadas de quase tudo, até de se deslocarem com alguma rapidez, quando uma emergência assim exige.

Numa de nossas viagens para uma dessas comunidades que parecem esquecidas no tempo, registrei em minha retina uma cena que não apenas insiste em não se apagar de minha memória, como sempre me leva a refletir sobre o quanto é invasiva e cruel a emissora que detém a maior audiência entre as televisões que operam em nosso país.

A moto em que viajávamos trafegava por uma estrada que mais parecia um corredor, quando alcançamos o lado direito de uma casa que se estendia para uma estrada vicinal. Era uma casa muito simples, de telhado baixo, rodeada por um terreiro de terra batida, limitado por um quadrante cercado por macambiras e um fio de arame farpado. Uma porta tosca, um batente e uma janela - onde dois panos de chita faziam a vez de uma cortina - compunham a parte frontal da humilde residência. À nossa passagem, percebi que um cachorro magro cruzara o terreno, emitindo um latido destituído de ameaças. Também pude observar, numa pequena cobertura anexa ao último cômodo da residência acanhada, um fogão de lenha castigado pelo tempo e coberto por telhas de eternite, onde duas panelas amassadas de alumínio, apoiadas numa trempe suspensa por quatro tijolos, cozinhavam o que deveria ser o almoço daquele dia: feijão e arroz. Os únicos sinais de modernidade naquele cenário da parte lateral externa da residência eram os fios sob nossas cabeças, que levavam energia elétrica para aquela casa, e uma antena parabólica apontada para o céu.

Segundos depois, a moto atingiu um ponto onde toda a frente da residência passou a compor nosso campo visual. Enxergamos então uma moça - uma moça de traços fisionômicos bonitos, de cabelos pretos - longos e escorridos - e pele ligeiramente queimada pelo sol. Ela estava sentada numa peça de madeira que servia de batente e seus olhos estavam fixos no aparelho celular que tinha numa das mãos. Nosso veículo avançou um pouco, o suficiente para percebermos que a moça sentara de costas para um aparelho de TV de muitas polegadas - desses que se compra em prestações a perder de vista. A garota levantou os olhos por uma fração de segundos à nossa passagem, mostrando-se concentrada e mais interessada no diálogo ou informações que chegavam até ela por meio do telefone.

A figura da moça foi se afastando de nós à medida que a moto ia avançando e que um outro traçado no caminho mudava nossa perspetiva. Novas paisagens foram se descortinando à frente, mas eu não conseguia me desvencilhar da cena que ficara para trás há pouco. Não que a realidade da qual nos distanciávamos - ponteada de contrastes - fosse rara ou me causasse estranheza. Isso não! Quando viajamos pelo interior do Brasil, uma das cenas mais comuns que passeia ante nossos olhos é a de pessoas morando em condições sub-humanas, de cujos casebres ou barracos apontam antenas espinhas de peixes ou parabólicas. Nos últimos anos, também o celular tem sido a novidade tecnológica que mais se disseminou no meio dos diversos estratos sociais espalhados pelos rincões do nosso país. O que mais impressionava, e que me fazia refletir, mesmo enquanto a moto sacolejava na estrada de terra batida, era a constatação de como a miséria absoluta convive com alguns símbolos da modernidade nos diferentes espaços sociais, sem que alguém atente para as implicações disso na vida das pessoas socialmente mais vulneráveis.

É sabido de todos nós que a televisão brasileira tem uma programação uniformizada para todo o território nacional. Todos os dias ela invade também a casa daquela moça mostrando uma outra realidade, de personagens bem vestidas, bem maquiadas e sentadas em mesas onde se servem de banquetes. Todas as manhãs, tardes e noites, o mundo daquela garota é invadido por um outro mundo, cheio de fartura, de glamour e de luxo. O mundo que a telinha apresenta àquela garota com toda naturalidade é um mundo que ela só poderá experimentar um dia em sonho. Então, quando a moça desgruda os olhos da tela da TV, ela senta na mesa para comer o feijão com arroz de sempre - quiçá, um dia ou outro acompanhados de um ovo ou pedaço de carne. Quando a noite avança, o aparelho é desligado na sala e a moça vai para a cama, seu estômago tem que se conformar com um jantar muito mais modesto que os saboreados pelos personagens das novelas. A moça acordará no outro dia e constatará que sua vida é muito menos colorida, bem mais difícil e muito mais previsível do que as mostradas nos enredos das novelas.

E aí eu me pus a imaginar o que passaria pela mente daquela moça quando, todos os dias, ela é submetida a esse choque de realidades. Fiquei pensando também ali na garupa da moto sobre os sentimentos que dominam seu coração nos momentos em que ela se põe a comparar sua existência de privações com a boa vida de gente do mundo lá fora, revelada na encenação dos personagens da TV e nos flashes da vida real deles. Fiquei matutando até que ponto aquele mundo de diversão, de fantasia e de sotaques diferentes mexe com a psique daquela garota, influenciando seu comportamento, seu jeito de ser e até os passos que ela dará para construir seu futuro.