sexta-feira, 1 de agosto de 2014

FERROVIA

POR QUE LAGARTO JAMAIS CHEGOU A OUVIR O APITO DO TREM



De como um acontecimento medonho pode ter impedido que a linha férrea fosse instalada em terras de Lagarto e Simão Dias, impossibilitando assim que o desenvolvimento desses dois município fosse fomentado ainda no início da década de 1950


JOSÉ EDUARDO BASTOS

 CONTEXTUALIZAÇÃO


A FERROVIA NO MUNDO

A ferrovia foi uma das invenções mais extraordinárias da humanidade. A aplicação da força expansiva do vapor à máquina móvel que circula sobre caminhos artificiais, constituído por duas trilhas de ferro, é o ponto de partida para o novo período da história em que o homem põe a serviço tais elementos, como forças cooperadoras em suas atividades.

A ferrovia foi uma criação que proporcionou o avanço econômico e social de vários países norte-americanos. Alvo de muitas discussões, ela surge na Inglaterra no início do século XIX, como uma inovação da Revolução Industrial, aguçando a imaginação e a criação do homem. Sua construção encontrou discursos de progressos incorporados pelas classes dominantes de vários países, e, antes mesmo de ser comprovada a sua eficácia na Inglaterra, outros países já faziam projetos visando sua implantação.

Muitas regiões desprovidas de meios de transportes fluviais foram beneficiadas com a instalação das ferrovias, integrando-se a outras localidades, garantindo assim comunicabilidade maior entre pessoas e comerciantes. Consequentemente, os lucros nos negócios aumentaram.

E em seu livro, A Era das Revoluções, Eric J. Hobsbawm diz que “a estrada de ferro, arrastando sua enorme serpente emplumada de fumaça, à velocidade do vento, através de países e continentes, com suas obras de engenharia, estações e pontes formando um conjunto de construções que fazia as pirâmides do Egito e os aquedutos romanos e até mesmo a Grande Muralha da China empalidecerem de provincianismo, era o próprio símbolo do triunfo do homem pela tecnologia”.

As potências mundiais perceberam que a chegada da estrada de ferro era uma possibilidade de crescimento e expansionismo do seu capital, e que a mesma iria permitir a transposição e o escoamento dos produtos em maior quantidade e segurança.

A estrada de ferro ficaria sendo o maravilhoso fator da circulação de riquezas e de convívio nacionais, e logo se tornaria a vara mágica da transformação da mata solitária e dos vales esquecidos em vastos campos agrícolas e em portentosas cidades. (CARVALHO, 1931, p.26).

A FERROVIA NO BRASIL

O primeiro incentivo à construção de ferrovias no Brasil se deu em 1828, quando o governo imperial promulgou a primeira carta de lei incentivando as estradas em geral. A primeira tentativa de fato de implantação de uma estrada de ferro no Brasil deu-se com a criação de uma empresa anglo-brasileira no Rio de Janeiro em 1832, que ligaria a cidade de Porto Feliz ao porto de Santos. Essa ferrovia tinha por finalidade transportar cargas do interior para o porto e diminuir os custos de exportação. O governo imperial, no entanto, não apoiou o projeto e ele não foi levado à diante.

A inauguração do primeiro trecho Companhia Estrada de Ferro D. Pedro II ocorreu em 29 de março de 1858, com a ligação de 47,21km da Estação da Corte a Queimados, no Rio de Janeiro. Mais tarde com a proclamação da república, a ferrovia foi renomeada para Estrada de Ferro Central do Brasil, que se tornou um dos principais eixos de desenvolvimento do país ao fazer a conexão de Rio e São Paulo em 1877, quando a Estrada de Ferro Dom Pedro II se conectou a Estrada de Ferro São Paulo.

Os primeiros engenheiros ferroviários a trabalhar no Brasil vieram da Europa, trazendo consigo o pacote tecnológico, bem como locomotivas, vagões, máquinas, ferramentas e técnicas. Eles foram enviados pelos investidores estrangeiros para implantar a ferrovia em nosso País, e tinham, como tarefa principal, efetuar a locação do traçado da linha.

A CHEGADA DA FERROVIA EM SERGIPE

Sergipe foi o último estado a ser contemplado com a implantação da estrada de ferro. Sua chegada contribuiu para a velocidade de locomoção e de comunicação, modificando o cotidiano da população, seus hábitos e costumes. Assim, com o avanço tecnológico e econômico, decorrente dessa nova era, a ferrovia surge como fruto dessas transformações, visando sanar as dificuldades em se transportar mercadorias e passageiros, interligando algumas cidades do nosso estado.

Também em Sergipe, as dificuldades de comunicação marítima eram um entrave para o escoamento da produção, e um empecilho para que as mercadorias chegassem à capital em boas condições, ficando o interior a enfrentar os mais sérios problemas de comunicabilidade - caso os rios não o alcançasse ou a ação do homem não o integrasse ao mar. Assim, quando a produção para a exportação definiu a vida econômica da Província, o planejamento e a construção de estradas, pontes e canais ganharam realce de algo inadiável.

A precariedade dos meios de transportes era vista assim pelo presidente da província de Sergipe em 1860: "Quanto as vias de comunicação, temos só aquelas que nos deu a natureza. E a arte ainda não veio com seus poderes aperfeiçoar a natureza. Estradas terrestres ainda não existem, os rios são navegáveis até os pontos em que a natureza os apresenta como tais”.

As péssimas condições das estradas que ligava o interior ao litoral – que possuíam em quase todas suas extensões 18 palmos de largura - também contribuíam para que as mercadorias não chegassem no horário de embarcar. Este fato trazia ainda enormes prejuízos ao comércio geral, além de fazer com que os navios retardassem em até um mês ou mais sua saída, causando danos aos produtos e, consequentemente, provocando aumento dos fretes.

Um morador de Aracaju, à época em que Sergipe ainda não contava com nenhum trecho de estrada de ferro, assim se expressou: “... faz lástima ver o que sofrem os nossos munícipes lavradores para trazerem aos trapiches e ao mercado desta cidade os seus produtos no tempo invernoso. Eles pagam pesadas contribuições à Fazenda Pública. Pelo açúcar pagam 5 por cento a Provincial e 7 por cento a Geral. Entretanto, seus carros e seus animais não estão imunes às grandes dificuldades que ordinariamente encontram nas estradas, quando deviam se julgar salvos delas, por se encontrarem tão próximos da cidade”.

Inicialmente chamado de ramal de Timbó, a linha que ligaria a estação de São Francisco, em Alagoinhas, a Sergipe foi aberta em 1887 até a localidade de Timbó, atual Esplanada. Dali para a frente foi sendo prolongada aos poucos a partir de 1908, atingindo Aracaju em 1913, Cedro de São João em 1915 e Propriá somente em 1956, às margens do rio São Francisco.

O estabelecimento de estrada de ferro em Sergipe, além de ser de grande interesse nacional, proporcionou desenvolvimento material, econômico, social e moral, facilitando a comunicação e a ligação do Estado a outras cidades, estados e pessoas, favorecendo desta forma a comercialização e exportação do açúcar, café e algodão - entre outros produtos manufaturados cultivados na Província.


A TENTATIVA DE IMPLANTAÇÃO DA LINHA FÉRREA EM LAGARTO

A Companhia Hidro Elétrica do São Francisco - Chesf - iniciou a construção de suas usinas em Paulo Afonso no ano de 1949. Com isso, todo o complexo acabou gerando demandas por materiais de pequeno e médio porte, indispensáveis ao erguimento das primeiras edificações. Grande quantidade de materiais de pequeno porte foi transportada em caminhões, mas a demora na entrega e o custo elevado por esse serviço fizeram com que se pensasse na viabilização de um meio que garantisse maior rapidez no deslocamento das turbinas de origem alemã – consideradas peças fundamentais para a montagem – até a hidrelétrica em questão.

Tais fatores convergiram, contribuindo para que se colocasse em prática o projeto da construção da estrada de ferro que passaria pelos municípios sergipanos de Lagarto e Simão Dias. Sendo assim, dia 10 de outubro de 1950 o presidente da República sancionou, e dia 12 do mesmo mês e ano o Diário Oficial da União publicou o decreto do projeto e orçamento para a construção do trecho da ferrovia que passaria pelo município de Lagarto:

DECRETO N.° 28.738 - DE 10 DE OUTUBRO DE 1950

Aprova projetos e orçamentos para construção de dois trechos da ligação ferroviária Salgado - Lagarto - Simão Dias - Paripiranga - Jeremoabo - Paulo Afonso.
O Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere o artigo 87, n.° I, da Constituição, decreta:
Artigo único. Ficam aprovados os projetos e orçamentos na importância total de Cr$ 86.867.059,00 (oitenta e seis milhões, oitocentos e sessenta e sete mil e cinqüenta e nove cruzeiros), os quais com êste baixam, devidamente rubricados, relativos à construção dos seguintes trechos da ligação ferroviária Salgado - Lagarto - Simão Dias - Paripiranga - Jeremoabo - Paulo Afonso:
a) 1.° trecho com a extensão de 77,995 km - Cr$ 70.391.417,60
b) 2.° trecho com a extensão de 20,260 km - Cr$ 16. 475.581,40
Total: Cr$ 86.867.059,00
correndo as despesas respectivas, no presente exercido, até o limite de Cr$ 12.000.000,00 (doze milhões de cruzeiros) à conta da dotação constante do Anexo 25, Verba 4, Consignação III, Subconsignação 06-31-01m), do Orçamento Geral da República e, nos exercidos vindouros, pelos recursos que forem destinados à mencionada ligação ferroviária.
Rio de Janeiro, 10 de outubro de 1950; 129.° da Independência e 62.° da República.
EURICO G. DUTRA.
João Valdetaro de Amorim e Mello.

Para a construção do terceiro trecho da ferrovia, dois meses depois o mesmo Presidente sanciona um novo Decreto:
DECRETO N.° 29.014, - DE 21 DE DEZEMBRO DE 1950
Aprova projeto e orçamento para construção do terceiro trecho da ligação ferroviária Salgado-Lagarto-Simão Dias-Paripiranga-Jeremoabo-Paulo Afonso.'
O Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere o artigo 87, número I,. da Constituição, decreta:
Artigo único. Ficam aprovados o projeto e orçamento na importância de Cr$ 14.924 226,20 (quatorze milhões novecentos e vinte e quatro mil duzentos e vinte e seis cruzeiros e vinte centavos), os quais com este baixam, devidamente rubricados, relativos à construção do terceiro trecho, na extensão de 24.240 quilômetros, da ligação ferroviária Salgado-Lagarto - Simão Dias - Paripiranga-Jeremoabo- Paulo Afonso correndo as despesas respectivas, no presente exercido, até o limite de Cr$ 12.000.000.00 (doze milhões de cruzeiros). à conta da dotação constante do Anexo 25. Verba 4 Consignação M. Subconsignação 06-03-01m), do Orçamento Geral da República e, nos exercidos vindouros, pelos recursos que forem destinados à mencionada ligação ferroviária.
Rio de Janeiro. 21 de dezembro de 1950; 129.° da Independência e 62° da República.
EURICO G. DUTRA.

Num segundo momento uma grande área de terra foi desapropriada para abrir passassem aos trilhos que trariam consigo trabalho e outras fontes de riqueza para a região, O Decreto que viabilizaria a desapropriação de terras, em toda a extensão por onde a ferrovia iria passar, foi sancionado dessa vez pelo presidente Getúlio Vargas, e continha a seguinte redação:

DECRETO N° 30.031 - DE 1 DE OUTUBRO DE 1951

Declara de utilidade pública, para fins de desapropriação. áreas necessárias à construção ferroviária.
O Presidente da República, usando da Lia atribuição que lhe confere o artigo 87, n.° I, da Constituição, e nos termos do Decreto-lei n.° 3.365, de 21 de junho de 1941, modificado pelos Decretos-leis n.° 4.152, de 5 de março de 1942 e de 9 de setembro de 1946, decreta:
Art. 1.° São declaradas de utilidade pública, para efeito de desapropriação, as áreas necessárias à ligação ferroviária Salgado-Lagarto-Simão Dias-Paripiranga-Joremoabo-Paulo Afonso, e compreendidas entre as estacas 5.305 e 6.305, da Viação Férrea Federal Leste Brasileiro, cujos projeto e orçamento foram aprovados pelo Decreto n.° 20.030, de 1 de outubro de 1951.
Art. 2.° Este Decreto entrará em vigor na data da sua publicação.
Art. 3.°  Revogam-se as disposições em contrário.

Rio do Janeiro, 1 de outubro de 1951- 130° da Independência e 63° da República.
GETÚLIO VARGAS.
Alvaro de Souza Lima

Grande quantidade de homens foi mobilizada para construir pontes, recorta e aplanar as áreas por onde passaria a linha de ferro. Além das inúmeras casas construídas em lagarto para abrigar os trabalhadores que vieram de outras localidades, foram erguidos ainda um almoxarifado, uma casa para engenharia e empreiteira, uma estação para parada do trem, e ainda uma outra casa, destinada a abrigar o serviço de comunicação por telégrafo. 

As moradias para os trabalhadores das companhias responsáveis pela instalação das linhas de trens em nosso país, nas décadas de 40/50, surgiam concomitantemente à implantação da malha ferroviária, com a finalidade de dar suporte ao funcionamento e à manutenção das linhas. A quantidade de residências nas vilas ferroviárias era definida em função da complexidade dos serviços realizados. Em locais mais simples eram construídas pelo menos três habitações – as chamadas casas de turmas -, enquanto nos entroncamentos e nos trechos mais movimentados eram implantados conjuntos residenciais maiores.

No inicio da década de 1959 as obras para a implantação dos trechos ferroviários em terras de Lagarto e Simão Dias estavam a todo vapor. As empresas contratadas pela Leste Brasileira seguiam à risca seus cronogramas de trabalho, quando uma grande explosão acabou por trazer transtornos a todos os envolvidos naquela empreitada. Na medida que nos foram legados poucos registros dos fatos, o resgate dessa história só é possível a partir do momento que damos voz a homens e mulheres que viviam à época e que retiveram o episódio aqui retratado em sua memória.

O TESTEMUNHO DE QUEM VIVIA À ÉPOCA

Na época em que a Aviação Férrea Federal Leste Brasileira se instalou em Lagarto para executar os serviços do trecho da ferrovia que atravessaria nosso município, nossa avó, dona Josefa (92 anos), residia em companhia do marido e da primeira filha do casal, no final da Rua de Laranjeiras.
Nesse mesmo período, o muribequense José Alves chegava a Lagarto para trabalhar como supervisor do trecho da linha de ferro que cortaria nosso município. Zé Alves, como era conhecido, era um rapaz moreno, alto e simpático. No dia a dia, Zé Alves costumava ir com amigos ao povoado Coqueiro, onde nossa avó residia com sua família. Ali o engenheiro da Leste conheceu a irmã de minha avó, Marizete. Ele se engraçou pela moça, os dois logo começaram a namorar, antes de três meses noivaram... e com mais três meses se casaram. Logo após contrair núpcias, o casal foi residir próximo onde fora montado o canteiro de obra da estrada de ferro.
 
Minha avó, dona Josefa, estava no sítio do pai quando ouviu a explosão no paiol da Leste
Nesse período nossa avó passou a costurar para os operários da leste, sendo remunerada por seu trabalho com a única moeda que podia circular entre os trabalhadores da ferrovia – o Boró. (Em seus depoimentos, tanto nossa avó quanto nossa mãe, dona Iracy (70 anos), dizem que o Boró era a moeda adotada pela Leste para evitar que os mineiros fizessem uso de seus salários para ingerir bebidas alcoólicas – a bebida era um item proibido para aqueles que trabalhavam na Leste. O pagamento do trabalho através do Boró também era uma forma de garantir monopólio, haja vista que a Companhia mantinha um armazém em que se comercializava de tudo: panelas, tecidos, roupas, calçados, materiais de limpeza, perfumes, carne seca, alimentos, cigarros... Mas muitos daqueles que trabalhavam na Leste sempre davam um jeito de trocar o Boró pela moeda circulante no país (e que eles chamavam de “dinheiro de deus”), pois essa era a única maneira de poderem pagar as prostitutas que deitavam com eles nos finais de semana, comprarem no comércio, e se embriagarem nos bares da cidade. E quem trocava a moeda circulante no país pelo Boró de um mineiro só podia se desfazer do dinheiro comprando no armazém mantido pela Leste).

As obras do trecho da ferrovia que passaria pelo município de Lagarto avançavam rapidamente, concentrando um número cada vez maior de operários na sua construção, quando um acidente ocorrido em um dos paios – e local em que se armazenavam dinamites – parece ter concorrido para que em breve o projeto fosse paralisado e abandonado de uma vez por todas.

O relato de nossa avó dá conta que a explosão no paiol de dinamite da Leste aconteceu na tarde de uma Sexta-feira da Paixão. Muitas casas da cidade se encontravam vazias; as pessoas aproveitavam o feriado para visitar seus familiares em outras localidades, e muitos devotos estavam a caminho da procissão. Logo nas primeiras horas da manhã desse dia, meu avô reuniu sua família, e todos foram passar o dia santo no sitio do seu sogro – que residia no povoado Coqueiro, distante cerca de 5 km da cidade. Lá já se encontrava Marizete - irmã de nossa avó –, acompanhada do seu marido, Zé Alves. O resto da manhã correu tranquilo, mas entre as 14h e 15h um estrondo assombrou a todos e espalhou o medo no seio da reunião familiar.

Ao relembrar o fato, dona Josefa diz que, quando se deu a explosão em um dos paióis da Leste instalada em lagarto, uma grande língua de fogo subiu no céu, seguida de uma nuvem negra de fumaça. A terra tremeu aos pés dos lagartenses residentes não apenas na cidade, mas também na maioria dos povoados (a explosão foi sentida também em Simão Dias – cidade que dista 27 km da nossa). Tudo voou pelos ares; inúmeras peças foram encontradas dias depois em localidades distantes. Onde as dinamites explodiram, uma cratera de muitos diâmetros se abriu, “engolindo” tudo que se encontrava ao redor. Antes que o fogo que se seguiu à explosão se espalhasse, os moradores se apressaram em salvar o que era possível, transportando tudo para as casas que ofereciam condições de abrigo – muitas das casas não garantiam acesso sequer a seus donos, pois o impacto da explosão fora tão forte que trincou paredes e encadeou portas e janelas, impedido a abertura normal das mesmas.

No sítio do pai de vovó o almoço da Sexta-feira Santa já tinha acabado fazia mais de uma hora. Os presentes haviam se dispersado pelos diversos cômodos da casa – alguns para fazer a sesta, e outros para se reunir aos donos da casa e colocar o papo em dia. Passava das 14h quando todos ouviram e sentiram a explosão. Instantes após confirmar suas suspeitas de que o barulho medonho viera da direção do Campo da Vila – local que concentrava o canteiro de obras Leste -, Zé Alves subiu numa mangueira, e, do alto dessa árvore, o supervisor da Leste Brasileira pôde formular suas primeiras impressões do ocorrido.

Horas depois, quando finalmente se fez presente no cenário da destruição, Zé Alves passou a assistir chocado o vai-e-vem de crianças, jovens e adultos apressados em salvar qualquer coisa de valor que tivesse escapado do soterramento e do fogo. Não obstante a dor e a tristeza estampadas no semblante de cada morador do local, Zé Alves não teve noticias de morte. Contaram-lhe apenas o drama de uma senhora, de nome dona Sinhazinha, que possivelmente ficaria paralítica, já que, no momento da explosão, a mesma fora atingida violentamente na perna por um fio desencapado que se partiu da rede elétrica que conduzia a energia dos geradores da Leste.

A tragédia que se abateu àquela tarde de sexta-feira santa sobre o Campo da Vila causou consternação, espalhou a tristeza entre todos, mas foi incapaz de inibir a ação dos aproveitadores de plantão. Mal a poeira assentou em torno do local do paiol que explodiu, o saque coletivo teve início, com indivíduos procedentes de outras áreas da cidade chegando em caminhões, e só saído dali com as carrocerias superlotadas de tudo que encontravam nos escombros.

A caça ao culpado pela explosão do paiol da Leste teve início horas depois da tragédia. Cogitou-se desde o primeiro momento que a detonação das dinamites poderia ter sido provocada pela movimentação de ratos no interior do paiol (a cada dia os roedores proliferavam em maior número dentro do depósito onde ficavam as dinamites, e o transitar deles naquele lugar poderia ter provocado a queda de um objeto capaz de produzir a fagulha que atingiu o pavio do primeiro explosivo). Mas dona Josefa recorda que, na época, circulou a notícias de que dois suspeitos chagaram a ser presos, foram interrogados e liberados logo em seguida - na tomada dos depoimentos, a polícia não conseguiu colher provas capazes de produzir a condenação daqueles acusados.

O professor Emerson Carvalho ainda era menino quando houve a explosão

O professor Emerson da Silva Carvalho é uma das figuras mais conhecidas em Lagarto. Além de ser um cronista social e esportivo, Emerson é um colecionador de jornais, revistais e documentos que abordam temas relevantes sobre nosso município. Num passado não muito distante, ele chegou a lecionar inglês para mim e para meus irmãos, quando cursávamos o ginásio na Escola Normal Nossa Senhora da Piedade. Em conversa com esse autor, o professor Emerson disse que ainda era um menino quando aconteceu a explosão nas instalações da Leste de Lagarto. Ele lembra que se encontrava na casa do seu pai e que sentiu seu corpo cambalear ante o tremor inesperado da terra. Para o teacher, o fato se deu em 1952, e ele recorda do pavor que tomou conta da população. Apesar da curiosidade em testemunhar o desastre, Emersom disse que não teve como se deslocar até o local no mesmo dia da explosão, uma vez que, naquele tempo, o Campo da Vila figurava como um lugar distante do centro da cidade. Ele recordou ainda que o telhado de uma casa desabou nas imediações da Leste, ceifando a vida da proprietária antes que qualquer socorro lhe fosse prestado. Meu interlocutor confessou não saber até hoje porquê as obras da linha férrea que passaria por Lagarto e Simão Dias foram paralisadas e concluiu sua fala dizendo que, quando a Leste encerrou seus trabalhos no Campo da Vila, sobraram os poços escavados pelas dinamites. Com o tempo, tais poços ganharam água da chuva, se transformando em piscinas naturais e espaços de lazer para a garotada de toda região.

Seu Antônio ouviu o estrondo e viu uma grande nuvem de fumaça
Seu Antônio Oliveira (85 anos) nasceu e se criou no Povoado Cajazeiras, e sempre foi um carpinteiro de mão cheia. Hoje (2013) seu Antônio da Cajazeira (como é conhecido) goza de uma merecida aposentadoria, mas, até pouco tempo, quando ainda na ativa, era ele um dos profissionais mais requisitados no município. As marcas distintas do seu trabalho de carpintaria podem ser conferidas não apenas nas dezenas de casas sólidas espalhadas por Lagarto, mas também nos prédios de arquiteturas arrojadas, que abrigam empresas públicas e privadas. Ao longo dos anos, seu Antônio passou a contar com a companhia dos filhos homens no exercício da profissão; pelo menos dois deles herdaram a profissão do pai, e hoje são artífices, hábeis modeladores da madeira. 

Em 1952, seu Antônio ainda residia no povoado em que nasceu, mas passava a maior parte do tempo na sede do município, já que seu dia era dedicado ao trabalho nas obras do telhado do prédio onde funcionaria o Cine Glória. Na tarde em que houve a explosão em um dos paióis da Leste de Lagarto, seu Antônio se encontrava em Cajazeira (distante 18 km da sede do município), aproveitando o feriado da Sexta-feira Santa para visitar parentes e amigos. Segundos depois da explosão das dinamites no paiol da Leste de Lagarto, seu Antônio ouviu o estrondo e viu uma grande nuvem de fumaça subir na direção da cidade (e pelo que ele ficaria sabendo depois, até mesmo em Paripiranga – município baiano que fica a 36 km de lagarto – se ouviu a explosão e se sentiu seus efeitos). De onde se encontrava, seu Antônio pressentiu que algo muito grave tinha acontecido; chegando à cidade ele se deparou com o alvoroço. Logo após aquele acontecimento que abalou a todos, comentários surgiram, dando conta que, por se tratar de um dia em que se observava um feriado santo, àquele dia somente o vigia era quem se encontrava nas imediações do barracão da leste. Logo após o ocorrido ele foi preso, conduzido à Aracaju e só depois de muito sofrimento é que ganhou a liberdade.

Ao falar sobre o fato 61 anos depois, seu Antônio da Cajazeira diz que a explosão arregaçou carros e ferros, fazendo um grande buraco no chão. Boa parte da ferragem amontoado no terreno acabou sendo lançada pela explosão, e foi encontrada depois, enrolada nos pés de coqueiros. Muita gente, como Antônio Miguel, perdeu seu veículo. O impacto da explosão foi tão forte que casas estouraram, os vidros da igreja estilhaçaram e os alumínios expostos nas prateleiras das lojas foram parar no chão.

Ao buscar na memória lembranças do tempo em que os trilhos ameaçavam se estender por terras lagartense, seu Antônio diz que em nossa cidade já tinha um cinema – o São João; um novo cinema estava sendo construído – aquele que viria a ser o Cine Gloria, e que funcionaria por muitos anos no local onde hoje (2013) está instalado o Bradesco; o número de veículos na cidade era pouco – e o modelo da moda era o sincachambó –; só quem possuía automóvel eram pessoas como Almeidinha, Zé Carlos, Pedrito de Batalha...; as ruas estreitas da nossa cidade viviam tomadas por cavalos, carroças e carros-de-bois. Seu Antônio prossegue seu relato dizendo que, com o início da construção da ferrovia, passaram a transitar pelas ruas de paralelepípedos de Lagarto máquinas pesadas, como a D8 (D8 são tratores de esteira de grande porte, que trafegavam por nossas ruas fazendo muito barulho e alvoroçando as pessoas, porque na época não havia estrada de rodagem que permitisse essas máquinas atingirem o canteiro da Leste trafegando através do entorno da cidade).

A terra abalou sob os pés de Piaba
José Gaciano dos Santos, mais conhecido como Piaba é um senhor nascido em 1946, que trabalha ainda hoje como carroceiro, e que reside na Avenida Francisco Garcez, em Lagarto. Quando do acidente da Leste, Piaba residia no centro da cidade, próximo de onde morava Pedrinho Correia – chefe de uma tradicional família lagartense. Quando aconteceu a explosão, Piaba se encontrava em companhia do pai, embaixo de um pé de mangueira. Ele diz que, a essa hora, a procissão já estava na rua. De repente, A terra abalou sob seus pés, e uma grande nuvem de poeira chegou a cobrir a árvore que dava sombra a ele e ao seu genitor. Piaba esclarece que, como ainda era muito pequeno, não pôde visitar o local da explosão – até porque, logo após a explosão, o local fora isolado, para impedir a aproximação dos curiosos. Ele lembra ainda que era uma sexta-feira da paixão e que, com a explosão, voou pedaços de ferros, de pneus e de instalações elétricas para todos os lados. Piaba lembra que, após a tragédia, a obra continuou por mais três anos, com os garimpeiros executando seus serviços no trecho compreendido entre as cidades de Lagarto e Simão Dias, sendo paralisada apenas em 1958. 

Piaba afirma que o fogo gerado pela explosão atingiu grande número de casa, uma vez que quase todas eram cobertas por palhas de coqueiro. À época, Lagarto era uma cidade muito pequena, e contava apenas com dois automóveis: um de propriedade de um senhor de nome Heraque; e um outro, pertencente ao pai de Tonho de Zé do Arroz. Piaba conclui sua fala dizendo que as únicas pessoas de posses na época eram homens como Antônio Martins, Acrísio Garcez e Dioníso Machado.

Quando as autoridades decidiram que as obras da rede ferroviária que passaria por Lagarto e Simão Dias deveriam ser paralisadas em definitivo, as turbinas necessárias ao funcionamento da Usina Hidrelétrica de Paulo Afonso passaram a ser transportadas em carretas – veículos importados pelo Brasil da Alemanha para garantir que o transporte dessa carga pesada se realizasse a contento, sem prejuízos para a continuidade da obra.

Em Lagarto o abandono das obras da ferrovia foi seguido da decisão do governo em promover a devolução das terras para os antigos donos. As construções existentes - e que já estavam prontas, mas sem qualquer perspectiva de uso – acabaram sendo ocupadas pelos ex-operários da Leste (que ficaram ser ter para onde ir, e que decidiram fixar residência no local onde antes labutavam diariamente).

A população operária que permaneceu em Lagarto, mesmo com o fim dos Trabalhos da Leste nesse município, deu início à formação do bairro que ficaria conhecido por Estação. Aos poucos, novas casas foram sendo construídas no local, com as pessoas tirando proveito de não terem que pagar pelo terreno, uma vez que erguiam suas residências em terrenos abandonados. 

O Bairro Estação também era conhecido como Corte (devido a aberturas feitas nas rochas, e que eram resultado de explosões planejadas de dinamites). Sua população sempre foi formada por famílias com baixo poder aquisitivo, e que ergueram suas moradias recorrendo a tijolos de barro, fabricados pela própria comunidade.

No Bairro Estação, problemas como falta de água, de energia elétrica, e de saneamento sempre atormentaram a população. Somente em anos mais recentes é que a comunidade que ali reside veio a ser contemplada com a ampliação e pavimentação da rua principal, instalação de um chafariz, construção de uma lavanderia e doação de terrenos para famílias que necessitavam de um teto para morar.  

Em 1998 a Câmara de Vereadores do Município de Lagarto aprovou, e o chefe do executivo sancionou a lei delimitadora dos bairros da cidade. Por essa Lei a Estação perdeu o status de bairro, e sua rua antiga rua principal - atualmente conhecida como Beco da Estação - se transformou numa linha que delimita dos bairros da cidade: Novo Horizonte e Ademar de Carvalho.

MARCOS DA TENTATIVA DE IMPLANTAÇÃO DA FERROVIA EM LAGARTO E SIMÃO DIAS

Mais de seis décadas transcorreram desde o acontecimento que provavelmente se constituiu no principal motivo para o abandono da construção do trecho da estrada de ferro que passaria por terras de Lagarto. Ao longo desse período, nossa cidade e nosso município passaram por profundas e importantes transformações, decorrentes principalmente do crescimento econômico, do aumento populacional, da construção de residências, prédios, estradas, rodovias, ruas, avenidas e conjuntos habitacionais. Tudo isso resultou em mudanças profundas nos locais que abriga as estruturas que dariam suporte aos trabalhos de implantação dos trilhos ferroviários em nosso município.

Em 2013, ano em que teve início essa pesquisa, deparamo-nos com uma séria de obras que chegaram a ser realizadas pelos garimpeiros a serviço da Leste não apenas em  Lagarto, mas também em municípios circunvizinhos -  como Simão Dias e Salgado. Seguindo indicações de amigos e orientações de pessoas que íamos interrogando, chegamos a locais que ainda concentram parte importante da estrutura construída para dar suporte à instalação dos trilhos em terras dos municípios de Lagarto e Simão Dias. A maioria das construções é formada por pontes sobre rios e riachos, por túneis e ...Claro que toda essa estrutura, localizada em sua totalidade em sítios e fazendas, se deteriora dia a dia - devido à ação do tempo - e tem servido mesmo é de abrigo para aves, cobras, lagartos e outros animais existentes na região. Não obstante os anos passados desde o abandono dessas construções, deparamo-nos com pontes e túneis que impressionam pela engenharia empregada, ou ainda devido à resistência às intempéries. 
Em Lagarto, a pouco mais de cem metros das onze casas que abrigaram os trabalhadores que iniciaram a implantação dos trilhos em nosso município, há uma ponte – que se encontra encoberta pela vegetação da região, mas que resistiu ao tempo. 


No povoado Coqueiro de Baixo, distante cerca de 6 km do centro de nossa cidade, nosso amigo Marcos Rocha registrou para nós (em fotografias) a estrutura de uma ponte ferroviária inacabada, e ainda uma vereda, aberta por entre uma mata nativa de grande extensão, com a largura exigida à instalação de dormentes que dariam suporte aos trilhos que seriam instalados por essas bandas do território lagartense. 



Hoje, essa trilha de terra batida aberta no meio da mata é utilizada principalmente nos finais de semana, quando os criadores de cavalos da região se reúnem, e aproveitam o caminho plano e linheiro para promover corridas entre seus animais.

Duas outras estruturas abandonadas pela Leste em nossas terras estão localizadas às margens da Rodovia Lourival Batista/SE-270, entre os municípios de Lagarto e Simão Dias, na altura do inicio da estrada que dá acesso ao povoado Olhos D’água. A poucos metros do acostamento da SE-270, duas estruturas semelhantes a muretas – uma paralela à outra e construídas com blocos de pedras e cimento – despontam no meio do matagal, no mesmo nível da pista asfáltica. Esse amontoado de pedras se integra com tanta propriedade à paisagem do lugar, que é fácil imaginar que ele jamais chama a atenção daqueles que pela rodovia trafegam. Certamente,a colocação das muretas nesse local obedeceu à necessidade de se compensar o declívio do terreno que se estende até a ponte ferroviária construída logo à frente. 



Quando deixamos para trás essas duas muretas e seguimos alguns metros a pé em direção a Simão Dias, logo visualizamos uma grande ponte – que hoje está tomada pelo mato, se localiza à direita e fica a alguns metros da rodovia. Essa ponte passa sobre um riacho e obedece às mesmas características arquitetônicas de outras construídas pela Leste em nossa região. Décadas de abandono fizeram com que o mato, as aves e os animais fossem os únicos a se beneficiar dessa estrutura. Como essa ponte fica paralela à pista asfáltica e sobressai na paisagem, vez ou outra o paredão voltado para a SE-270 recebe uma demão de cal, garantindo assim mais destaque às propagandas que costumam ocupar esse espaço.

Sempre que chegamos ou saímos da cidade de Simão Dias, trafegando pela Rodovia Lourival Batista/SE-270, deparamo-nos com uma fazenda cercada de eucaliptos, que fica a poucos quilômetros de distância da terra dos capa-bodes, e que é de propriedade da viúva do fundador da empresa G’Barbosa. Além da casa grande que se destaca na paisagem, o conjunto restante é formado por uma capela, por residências menores, por garagens e galpões. À frente dessa fazenda, do outro lado da SE-270, um outro terreno de vegetação rasteira, onde cavalos, bois e cabras pastam tranquilamente. Nesse local encontramos a estrutura de uma ponte, também construída pelos trabalhadores da empresa contratada pela Leste no início da década de 1950, e que sobressai no terreno. Logo à frente, uma trilha aberta no pasto conduz a um túnel escavado na rocha, que se estende por alguns metros por entre o sopé da montanha em direção à Simão Dias. Essas obras deixadas pela Leste em território simão-diense foram paralisadas concomitante à interrupção da construção do trecho ferroviário no município de Lagarto. Quando os trabalhadores contratados pela Leste foram dispensados de seus postos de trabalho por aqui, quilômetros e quilômetros de trilhos e dormentes foram deixados para trás, abandonados no meio de sítios e fazendas, nas terras que se estendem até Lagarto. Na medida que o tempo passou, e os agricultores da região perceberam que o projeto de construção da ferrovia não mais seria retomado, trilhos e dormentes passaram a ser arrancados para servirem de utensílio nas casas de farinhas espalhadas por povoados lagartense.  

Um marco importante dos trabalhos realizados para garantir a passagem de trem em terras simão-dienses nos foi apresentado do topo da Serra do Cabral, por nosso amigo José Santana Curvelo. Lá do alto nos foi explicado que uma trilha de mata verde – que passa no pé da serra, que se destaca na paisagem seca da vegetação rasteira, que atravessa toda a extensão do território dos capa-bodes, e que só se perde de nossas vistas quando se aproxima da divisa entre Sergipe e Bahia – foi aberta por uma das empresas a serviço da Leste para permitir que o trem por ali passasse, transportando a tecnologia que Paulo Afonso demandava para posteriormente ofertar a energia elétrica que o nordeste necessitava para fomentar seu desenvolvimento. Contemplada do alto, essa linha de mata verde parece serpentear nas curvas do sopé da montanha, aproveitando-se dos nutrientes que a chuva carrega serra abaixo para se destacar da vegetação nativa durante o ano inteiro.

No intuído de verificarmos in loco as condições de obras deixadas pela Leste na região compreendida entre Lagarto e Salgado, fomos conduzidos pelos amigos Irineu Roberto de Oliveira e Floriano Fonseca até Urubutinga – um povoado que dista cerca de 6 km do centro de Lagarto, e que tem um córrego em uma de suas estradas vicinais – que recebeu o nome de riacho Seco. Ao atravessarmos por sobre as águas claras e mansas desse riacho, nos defrontamos com o que deveria ter sido um dos lados de uma ponte. A obra inacabada que lá se encontra impressiona – tem a forma de um trapézio e deve possuir entre quinze a vinte metros de comprimento, por dois metros e vinte de altura. Enquanto árvores frondosas impedem que os transeuntes divisem essa obra ao passarem pela estrada, aqueles que seguem nosso exemplo, e se dispõem a transpor o riacho, se equilibrando nas toras de paus que o atravessam de um lado a outro, acabam se deparando com ela dominando uma clareira - que se estende em direção ao sol nascente. Como essa obra ficou inconclusa, e sequer chegou a receber cobertura, seu vão interno se tornou terra fértil para o mato. Hoje, seu estado de conservação reflete apenas às mais de seis décadas de abandono a que a mesma ficou submetida.


Para ampliarmos ainda mais nosso campo de pesquisa, eu e os amigos Irineu Roberto de Oliveira e Floriano Fonseca nos dirigimos para uma região mais ao leste do nosso município, precisamente a uma localidade de nome Timbales, que fica entre os povoados Açu Velho, Juerana, Taboca e Açuzinho. Ao lado de uma estrada que passa por esse lugar, a Companhia Leste deixou quase concluída mais uma ponte. Trata-se de uma obra de grande porte, medindo aproximadamente vinte metros de comprimento por doze de largura, encimada por espessa camada de cimento e pedras. Toda essa estrutura fica no mesmo nível da estrada que a ladeia pelo poente; do lado oposto, duas pilastras se elevam acima – uma sobreposta à outra - formando uma pequena arquibancada, além de proteção segura contra cheias ocasionais do riacho lodacento que passa sob a ponte. A exata noção da solidez dessa obra nos é dada quando descemos por uma de suas laterais e alcançamos o arco que se estende de um lado a outro, formando um conjunto de pedra e concreto, em acabamento caprichoso. Ao lado do riacho é possível contemplarmos toda a extensão do túnel, e até lamentarmos o fato de tanto dinheiro público ter sido gasto numa obra que sequer chegou a ser inaugurada.

Ainda hoje (junho de 2014), podemos encontrar pelo menos duas das edificações deixadas pela Leste Brasileira no bairro estação, e ainda uma vila de onze casas, localizadas no início do povoado Limoeiro. A maior e mais importante dessas edificações é um prédio de grande fachada, que conta com seis salas espaçosas, duas dependências menores – onde provavelmente funcionariam a bilheteria e o almoxarifado da estação ferroviária de Lagarto -, e dois banheiros. Todo o prédio é ladeado por um muro alto e por um pátio espaçoso, sombreado na frente por árvores altas e frondosas. Malograda o projeto de implantar a linha férrea em nossas terras, o prédio, que deveria funcionar como ponto de parada de trens em nossa cidade, e local de embarque e desembarque de mercadorias, acabou abandonado e se transformou em abrigo para mendigos e usuários de drogas. Em meados da década de 1990, o prédio já funcionava como uma creche, dirigida pela Ação Social. Em 1998, esse prédio sofreu pequena reforma, e passou a funcionar como unidade escolar, recebendo o nome de Creche Artur de Oliveira Reis. Uma determinação do promotor de Justiça do Patrimônio Público de Lagarto, Antônio César Leite de Carvalho, impeditiva a que nomes de pessoas vivas nomeassem prédios públicos no município de Lagarto, fez a Câmara Municipal de Lagarto aprovar a Lei nº 340, de 1° de junho de 2010, de autoria do executivo municipal, trocando a denominação da Creche Artur de Oliveira Reis para Adalberto Fonseca. A creche foi mais uma vez pintada – recebeu as cores adotadas pela administração de então – e abriu suas seis salas para atender os filhos da comunidade dos bairros em seu entorno.
 

Num terreno baldio, situado atrás e a poucos metros do prédio que deveria abrigar a estação ferroviária de Lagarto, encontramos uma casa da altura de um prédio de um andar, construída sobre alicerce que se eleva do solo por mais de três metros. O acesso a ela se dá por um terreno encharcado e escorregadio, que fica ao lado de casas simples e de tetos baixos. O mato sobe pelas paredes e se entranha nos cômodos da casa abandonada ao léu, intimidando qualquer aproximação dos que desejam realizar uma investigação mais cuidadosa. Fotos tiradas logo após sua construção, já mostram essa casa sem telhado, dominando um descampado de vegetação rasteira e seca. Sua arquitetura diferenciada nos faz crer que esse prédio poderia funcionar como um ponto privilegiado de observação ou mesmo como um posto de telégrafo.


As onze casas estão localizadas a cerca de quinhentos metros da rodovia que liga Lagarto a Campo do Brito. O acesso a essas casas – que lembram uma vila operária – se dá por uma estrada estreita - também de nome Onze Casas – e que conduz ao povoado Limoeiro. No início da década de cinquenta, trabalhadores da Leste habitavam essas casas – em fotos da época, pode-se observar que os tijolos dessas residências não possuíam reboco e que elas obedeciam a desenho arquitetônico semelhante. Imagens recentes denunciam que algumas chegaram a ganhar reboco e até mesmo pinturas em tons fortes, mas que continuaram cercadas de mato e sem saneamento. Hoje, tais residências figuram como o retrato fiel do descaso e abandono, denunciando na aparência que jamais chegaram a merecer a atenção do poder público. Nas vezes em que lá estivemos verificamos que elas abrigam uma população carente, que vive basicamente de aposentadorias, dos programas sociais do governo e de donativos - que lhe chegam pelas mãos de grupos religiosos, que a elegem como alvo da caridade cristã nas datas mais significativas. As crianças que ali residem brincam no meio do mato – que se estende irregular pelo terreiro em frente às casas até a beira da estrada -, correndo o risco de serem mordidas por uma cobra ou serem contaminadas nas águas dos esgotos que correm a céu aberto. Nos contatos que mantivemos com os moradores das onze casas, foi possível deduzir que as residências costumam ser adquiridas através de compras diretas ou de trocas, em transações que nem sempre obedecem a trâmites legais – e isso talvez explique porquê sempre somos recebidos ali com desconfiança. Que a situação dos moradores das onze casas esteja regular ou não, pouco importa. Fundamental é compreendermos que as benfeitorias feitas pelos moradores dessas casas – por mais básicas que sejam – se constituem em iniciativas únicas e importantíssimas, haja vista que são elas que garantem esse marco histórico ainda estar de pé.


CONCLUSÃO

Não é possível afirmarmos que apenas a explosão das dinamites no paiol da empresa instalada em Lagarto tenha sido o acontecimento que determinou o abandono do projeto de implantação da linha férrea em nosso município. Pessoas que entrevistamos foram enfáticas, ao afirmarem que os garimpeiros da Leste prosseguiram trabalhando para as bandas de Simão Dias por pelo menos mais três anos. A explosão em Lagarto coincidiu com uma conjuntura internacional singular. Nesse momento, a indústria automobilística ganhava força nos Estados Unidos da América, e já se lançava ao projeto de ganhar novos mercados, principalmente na América do Sul. Aliado a isso, havia ainda o interesse da indústria de pneus estadunidense em escoar sua produção para países como o Brasil. Era preciso, portanto, se inverter prioridades, para que fosse possível se investir na construção de estradas, em detrimento de ferrovias. Hoje, não há como ignorar que esse cenário econômico norte-americano do início da década de 1950 foi decisivo, e provavelmente se transformou no fiel da balança, no momento em que o governo teve que decidir pelo abandono dos trabalhos ferroviários em Lagarto.

Os registros históricos que nos foi legado mostram que os municípios e cidades por onde as ferrovias passaram, nas décadas de 1940 e 1950, logo experimentaram grande desenvolvimento. Em Sergipe, estradas esburacadas e perigosas se constituíam em únicas alternativas para escoamentos de produtos e deslocamentos de pessoas até a capital. Arriscava-se a vida em viagens que duravam três vezes mais que nos tempos atuais (enquanto hoje perfazemos os 76 km que separa Lagarto a Aracaju em pouco mais de uma hora, em 1950 essa mesma distância era percorrida em cerca de três horas). Grande parte das mercadorias embarcadas no interior com destino à capital acabava ficando pelo caminho. A má conservação das estradas fazia com que boa parte da carga escorresse pelas fendas das carrocerias estragadas dos caminhões – o que implicava diminuição nos lucros dos produtores. O trem representava o meio seguro para o transporte, e era também a garantia de menos perdas nas transações comerciais realizadas entre municípios.

Se tomarmos como referências cidades brasileiras e de outros países, é possível especularmos sobre o que poderia ter acontecido com o município de lagarto e nossa cidade, caso o trem tivesse passado por aqui. Certamente, a terra de Silvio Romero e Laudelino Freire teria uma configuração geográfica diferente da que tem hoje. A cidade teria se expandido principalmente para a região que compreende os bairros Novo Horizonte e Ademar de Carvalho. Um comércio forte teria se formado nas cercanias da estação ferroviária. É possível que um intercâmbio econômico promissor tivesse se estabelecido entre Lagarto e Aracaju, assim como entre Lagarto e outros municípios sergipanos e baianos - contribuindo para que um volume maior de recursos passasse a circular por aqui, aquecendo assim nossa economia. A população de nossa cidade teria aumentado além do seu ritmo normal, à medida que a ferrovia acenasse com novas oportunidades de negócios e empregos. É provável que o município de Lagarto estivesse experimentando um outro patamar de desenvolvimento – superior ao de hoje. Claro que isso representaria também o incômodo de estarmos convivendo com todas aquelas mazelas sociais típicas de crescimentos urbanos rápidos e desordenados. Mas, não tem como deixar de reconhecer que teria sido uma experiência excitante para o lagartense ver o progresso chegar a cada dia na terra dos papa-jacas, no ritmo lento mas seguro do apito do trem.

                                                                                                                                                                    Lagarto(SE), 1º de agosto de 2014


Bibliografia:

HOBSBAWN, Eric J. A Era das Revoluções, 1789-1848. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.

OLIVEIRA Melo, Givanete. Bairro Estação: Real e Imaginário. 1º Edição. São Cristóvão: UFS. 1999. 13p.


SANTOS Rosário, Gilvânia. Memória Sobre a F Sobre a Ferrovia de Salgado. 1º Edição. Lagarto: Fjav. 2009. 54p.


CARVALHO. Austriciliano Honório de. O Ferroviário. Jornal do Comércio. Rio de Janeiro. 1031.


DANTAS, Iberê. História de Sergipe: República (1889 a 2000). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004.


BRASIL. Decreto N.° 28.738 - DE 10 DE OUTUBRO DE 1950.


BRASIL. Decreto N.° 29.014, - DE 21 DE DEZEMBRO DE 1950.



BRASIL. Decreto N° 30.031 - DE 1 DE OUTUBRO DE 1951.



Agradecimentos:

José Santana Curvelo; Irineu Roberto de Oliveira; Paulo Oliveira de Santana; Ademir Francisco de Oliveira; Floriano Fonseca;Tsunami; Marcos Rocha; Marcos Prata; Reinaldo Prata; Edvanio de Jesus Nascimento.



Fotos:

José Eduardo Bastos; Floriano Fonseca; José Santana Curvelo; Irineu Roberto de Oliveira; Marcos Rocha.



Meus agradecimentos especiais às pessoas que aceitaram enriquecer meu trabalho com seus depoimentos:

Josefa Batista de Santana (Dona. Zefinha); Antônio Oliveira; Emerson da Silva Carvalho; José Graciano dos Santos (Piaba).