quinta-feira, 26 de novembro de 2015

LETÍCIA PAZ


VOZ, ALEGRIA E FELICIDADE NUMA SÓ INTÉRPRETE


                                                                                        Eduardo Bastos



                                                         
Conhecia minha personagem de hoje quando fui comprar roupas naquela loja tradicional da cidade, de propriedade de uma grande amiga de família. Como sempre, fui recebido com todo carinho que se pode dispensar a um cliente, e a dona me indicou uma atendente nova, que me tratou como se eu fosse um comprador disposto a levar metade da loja para casa. 

Separei roupas em quantidade superior à que pretendia levar, e me dirigi ao provador com um dos braços pendendo. Fechei a cortina e, enquanto me entregava à torturante tarefa de provar uma roupa após a outra, uma canção suave, entoada por uma voz afinadíssima, invadiu a cabine. Passei a me deliciar com aquela cantoria de bom gosto, e fiquei a me perguntar de quem poderia ser aquela voz. Seria possível aquela melodia estar sendo entoada pela garota que me atendera? 

Deixei a cabine ainda em dúvida, mas por ali só se encontrava a menina mesmo, me esperando com um sorriso largo nos lábios. Ao invés de confirmar as roupas que levaria, perguntei-lhe se gostava de música. A menina disse que sim, e também que cantava. Confessei-lhe que não tinha voz para cantar mas que adorava música. Ela prosseguiu dizendo que era fã de bandas como Pink Floyd, Ramones, AC/DC, Metálica, Rolling Stones, Nirvana, The Doors, The Beatles... Retomei a palavra para lhe dizer que me criei ouvindo tudo isso e que possuía em arquivos a discografia quase completa dos Beatles e de Luiz Gonzaga - porque o Gonzagão foi o maior e o melhor, o que influenciou todos os grandes compositores e cantores do nosso país. Falei-lhe ainda de minha paixão pela MPB, pela Bossa Nova e pelo Rock Nacional - e descobri que essa era uma paixão compartilhada na mesma medida pela garota. Encerramos nosso papo combinando que seríamos amigos no mundo digital, e eu voltei de novo a falar de música - porque eu não podia me despedir de Letícia sem dizer que era fã incondicional da Legião Urbana e de Cazuza. 

Letícia tem paixão pela música
Letícia Paz é uma menina-mulher de 19 anos de idade, que desde muito cedo se encontrou com a música. Aos oito ou dez anos ela começou a cantar, enquanto balançava o irmão mais novo na rede. Aos 11 passou a cantar em público, no coral da igreja, permanecendo ali até pouco depois de completar 17 anos. Foi assim que essa lagartense tomou paixão pela música e desde muito nova começou a explorar a voz, interpretando cantoras que seu pai tinha por influencia e gostava muito, como Elis Regina, Zélia Duncan e Cassia Eller. Outra influencia importante em relação à composição e expressão foi o cantor Zé Ramalho. 

Letícia nasceu na cidade de Lagarto e foi criada no povoado Brasília, de onde saiu apenas recentemente para fixar residência na sede do município. O ensino médio completo ela fez no Colégio Silvio Romero. A mãe de Letícia, a quem ela deu o apelido carinhoso de "rainha", chama-se Rute Santos Dias e seu pai, que reside atualmente na cidade de Aracaju, responde pelo nome de Luiz Fernando da Paz. 
Menina-mulher decidida

Recentemente, li em algum lugar uma amiga chamando Letícia de "a cantora da voz de veludo". Mas ela descobriu mesmo que podia cantar num coralzinho da escola, do qual, a princípio, nem ia participar. Mas acontece que, como na escola Letícia era muito bagunceirinha, quando suas colegas começaram a cantar ela passou a imitá-las - só que as imitava com uma voz que imprimia ainda mais harmonia à uma rica melodia do cancioneiro popular: "Se essa rua/Se essa rua fosse minha/Eu mandava/Eu mandava ladrilhar...". Ai a professora notou o talento dessa garota e a colocou para fazer o solo do coral - e logo depois Letícia passou a cantar na Igreja. 

Ainda hoje, Letícia confessa ser muito fã de Elis Regina, do jeito especial que ela tinha de interpretar. Ela gosta especialmente de MPB, da Bossa Nova, do Pop Rock, e diz ser fã incondicional de Rita Lee. Outro ícone em sua vida é Duda Brack, um novo nome que acaba de surgir no cenário musical, uma cantora genial, com a qual Letícia se identificou desde o primeiro momento. 

A canção preferida de Letícia é a que afaga seu coração
Muito nervosismo e muita emoção foram sentimentos que dominaram Letícia quando ela se apresentou pela primeira vez em público. Porque ela era uma pessoa extremamente tímida, a ponto de, quando cantou pela primeira vez na Igreja Assembleia de Deus do seu povoado, mal conseguiu olhar para as pessoas. Se escondeu do público com o microfone no rosto, tremendo de medo. Mas esse também foi um momento marcante na vida de Letícia, pois ali ela percebeu no olhar do público reciprocidade na emoção; tudo que ela passava lhe era retribuído na mesma intensidade. Nessa época, o repertório de Letícia era composto por músicas de cantores como Gerson Rufino e Cassiane. Depois ela descobriu a voz grave de Fernanda Brum, e passou a cantar músicas de adoração, que se aproximavam do pop rock, com melodias mais elaboradas.

Deixar a igreja aos 17 anos foi uma decisão pessoal de Letícia, por se sentir um pouco presa e sufocada. E, quando isso aconteceu, seus "irmãos" reagiram com tristeza. Letícia confessa ter assimilado coisas positivas enquanto frequentou a igreja - coisas que acabaram contribuindo na formação de sua personalidade e caráter. Hoje, sempre que Letícia retorna à igreja na condição de visitante, todos a recebem com abraços e carinhos. A princípio, nem o pai nem a mãe queriam aceitar seu afastamento da igreja, e chegaram até mesmo a forçar a filha a voltar a frequentar os cultos. Mas, nesse momento, Letícia já completara 18 anos e havia decidido por si mesma que deveria, finalmente, fazer algo por sua vida que fosse da vontade própria. Hoje a mãe aceita com naturalidade a decisão da filha, e Letícia diz ter uma relação muito boa com Deus, sem, necessariamente, precisar fazer parte de uma igreja.

Assim que decidiu cantar na noite Letícia passou a viver experiências marcantes, já que costuma se apresentar em lugares diferentes, para públicos distintos. Ela diz que o grande desafio se deve ao fato de não poder saber antecipadamente qual será a reação do público. Recentemente, Letícia cantou num barzinho aqui de Lagarto que estava meio vazio, mas as pessoas que marcavam presença ali reagiram com tanta reciprocidade, as canções soaram tão bem, havia tanta energia no ar que tudo valeu à pena. Mas há lugares que ela diz ser difícil cantar, pois, enquanto se apresenta, as pessoas parecem nem notar sua presença - apenas conversam e se distraem; nunca lembram dos aplausos. 

Quando canta na noite, o reportório de Letícia é formado metade por canções de gosto pessoal, metade por músicas que as pessoas gostam de cantar nas apresentações. As músicas são selecionadas, também, considerando-se o ambiente - há músicas específicas para o Sarau da Caixa D'Água, e outras para barzinhos, porque ela gosta de transmitir sensações para seu público de acordo com o lugar. Letícia diz que a música que mais gosta de interpretar é Inverno, de Adriana Calcanhoto, porque é a canção que afaga seu coração nos dias em que ela está triste, e também naqueles em que ela está feliz e em paz. A música que Letícia não suporta mais cantar é Como eu Quero, do Kid Abelha, porque em todo canto que ela chega alguém lhe pede para cantar essa canção. Ela confessa que até gosta do Kid Abelha, mas acha que essa melodia não fica legal na sua voz, já que é difícil encontrar o tom exato. 

Letícia já chegou a ficar constrangida com criticas da plateia, mas ela aprendeu que elas também são produtivas. Quando estava começado a cantar em barzinho, Letícia diz ter recebido várias críticas - e as recebe até hoje, porque é uma cantora que permanece e permanecerá todo tempo se aperfeiçoando. Alguns amigos já chagaram a falar pelo fato de ela sair do tom, mas Letícia lembra que ainda não sabe tocar nenhum instrumento e que aos poucos vem buscando dominar um pouco a parte rítmica das canções. 

Hoje o que ela mais deseja é que a música possa lhe proporcionar, além de alegria, bem estar e frutos importantes para sua vida futura. Letícia diz que não dá para viver só de música, porque o músico é muito desvalorizado, principalmente no interior, onde ele não tem oportunidade de mostrar e ter seu trabalho reconhecido.  Letícia diz que o artista faz arte porque ama a arte. 

Acompanhada por Camilo ao violão
Nas apresentações que costuma fazer em espaços públicos e bares, Letícia sempre se faz acompanhar ao violão por Camilo Santana. Ela o define como seu parceiro de guerra, um cara que a compreende, que tem paciência, que a houve e que sempre tem a opinião mais sensata. Camilo, na opinião de Letícia, é um músico produtivo e, quando os dois se reúnem para ensaiar, sempre acaba saindo algo produtivo desse encontro. Letícia diz que, apesar de Camilo ser um sujeito muito novo, ele é muito bom, bastante talentoso e que conhece de música feito gente grande. 

O Sarau é seu espaço predileto 
Na opinião de Letícia, o Sarau da Caixa D'água é um espaço para pessoas como ela, para artistas relativamente sem projeções, mas que têm obras grandes e que podem usar aquele palco como espaço privilegiado para mostrar o que fazem de melhor. Quando se apresenta no Sarau Letícia mostra quem realmente é. Ali ela se sente livre para passear no palco e mostrar sua arte. A participação de Letícia no Sarau é tudo que ela gosta de fazer no final do mês. 

Letícia tem em Afonso um grande incentivador
Um dos idealizadores do Sarau da Caixa D'água, e grande incentivador de Letícia, é o letrista, músico, poeta e cantor Afonso Augusto. Letícia Paz revelou que Afonso Augusto lhe remete a inúmeras coisas boas. Ela conheceu Afonso quando ainda tinha 17 anos, no dia em que ela foi cantar pela primeira vez numa banda chamada Anônimos, que era uma grupo de rock aqui de Lagarto, e que estava se apresentando  no circuito do IFS. Nesse dia Afonso fez uma participação, interpretando uma canção do Nirvana, e Letícia ficou encantada. Logo depois, Letícia e Afonso começaram a participar de grupos de amigos comuns, e ai os dois foram se conhecendo e criando um elo mais forte, até cantarem juntos pela primeira vez num bar da cidade, que já fechou e que se chamava Plaza. Na ocasião, Letícia pediu e cantou junto com Afonso uma música de autoria dele, que tem por título Amada Meretriz. Ali a amizade se consolidou e os dois seguiram juntos pelos caminhos da música. 

Fora de Lagarto, Letícia chegou a cantar em Canindé do São Francisco, fazendo participações em apresentações de bandas local, e tem recebido propostas para cantar em cidades circunvizinhas. Nossa intérprete pretende sim ter um repertório próprio, e, para isso, há mais de um ano vem fazendo músicas com letras que refletem coisas íntimas, e as pretende gravar assim que perceber que as melodias estão com a cara de Letícia. Nesse trabalho autoral, Letícia tem composto em parceria com Camilo Santana e Danilo Duarte, da banda Estúdio Box Azulejo. O grande desejo profissional de Letícia é que o lagartense venha a valorizar mais seu trabalho e os dos artista da terra, pois eles (os artistas, que têm feito trabalhos lindos!) precisam de um olhar mais atento, e necessitam, mais que tudo, de oportunidade, do carinho e do aplauso do público local. 

Letícia rodopiando para "seu" Carcará
Em sua origem latina, o nome Letícia significa alegria, prazer e felicidade. A alegria em Letícia se manifesta quando ela toma do microfone para caetanear: "...Tava por acaso, ali não era nada/Bunda de mulata, muque de peão/Tava em Madureira, tava na bahia/No Beaubourg no Bronx, no Brás e eu e eu e eu e eu/A me perguntar: Eu sou neguinha?". O prazer emana de Letícia sempre que ela nos brinda com uma interpretação toda sua de uma canção da "ovelha negra" Rita Lee: "... Amor é cristão/Sexo é pagão/Amor é latifúndio/Sexo é invasão/Amor é divino/Sexo é animal/Amor é bossa nova/Sexo é carnaval...". Já a felicidade... ah, a felicidade!... brota quando Letícia surpreende a todos com seus rodopios no palco para apresentar seu pássaro mais valente: "Carcará/Lá no sertão/É um bicho que avoa que nem avião/É um pássaro malvado/Tem o bico volteado que nem gavião/Carcará/Quando vê roça queimada/Sai voando, cantando/Carcará..."


Fotos: Eduardo Bastos/Afonso Augusto

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

LELLO ARAÚJO: UM EMBELEZADOR DA CIDADE, UM ARTÍFICE DO PINCEL E DO SPRAY


                                                                                                                          Eduardo Bastos


NO MEIO DO CAMINHO TINHA ARTE

Um dia do mês de outubro de 2015, sai de casa e me deparei com a exposição de quadros sobre a qual eu ouvira falar nas redes sociais. Nesse momento, passei apressado e segui meu caminho, lembrando que precisava passar por ali na primeira oportunidade que tivesse. No retorno, não me contive e adentrei a sede da Diretoria Regional de Educação (DR-2) - local que abrigava a exposição de artes de Lello Araújo, intitulada "Lello Lagartense", e fui recepcionado pelo artista em pessoa. Naquele instante me ocorreu uma ideia e, ao invés de percorrer o espaço, apreciando as obras, indaguei ao próprio Lello se seria possível eu fotografar tudo que via ali. O artista não se fez de rogado, me dizendo que eu ficasse à vontade. 

Paisagem urbana em tela pintada por Lello Araújo
Não havia se passado nem quinze minutos desde minha partida do DR-2, e eu já estava de volta, com todos os apetrechos de que necessitava para fazer minhas fotos. Encontrei o artista montando sua moto, de saída para tratar de assuntos pessoais, e comuniquei-lhe que faria meus registros naquele momento. Mal eu havia sentado e retirando a bolsa da máquina do pescoço, fui surpreendido pela presença do artista ao meu lado, esperando pacientemente que eu me aprontasse para entrar em ação. Em seguida, Lello se postou junto a mim e atendeu meu pedido de pousar ao lado de cada tela - e, a cada click, Lello, que mal me conhecia até então, fazia questão de falar sobre inspirações e técnicas empregadas nas obras expostas. Nesse momento também ganhamos a companhia de uma amiga, que tratou de apresentar eu a Lello e Lello a mim, e que contribuiu para que naquela manhã eu deixasse o DR-2 com a sensação de ter ganho a manhã, tanto por ter registrado a estreia de um grande artista, quanto por ter feito mais um amigo - um amigo que é mesmo um sujeito gente fina, educado e atencioso até mesmo com eu, um individuo que captura imagens sem a menor pretensão fotográfica, e que desejava apenas deitar um olhar curioso sobre uma das expressões artísticas daquele artífice do pincel e do spray. 

LELLO ARAÚJO 

Praça da Piedade em recorte de Lello Araújo
Lello Araújo é o nome artístico  de Marcelo dos Santos Araújo, um Lagartense filho de Carlos Lisboa de Araújo e de Vera Lúcia dos Santos, que nasceu e foi criado no bairro Cidade Nova, que estudou durante toda sua infância na Escola Frei Cristóvão de Santo Hilário, e que nunca saiu de sua cidade natal para residir fora. Logo cedo, Lello iniciou carreira como pintor, trabalhando com pinturas artísticas e letreiros comerciais para lojas, até finalmente virar grafiteiro. Em nenhum momento o artista trabalhou em outra área, nem é capaz de se ver exercendo outra profissão. Desde cedo, por volta de 2001, ele percebeu que tinha vocação para o grafite, e  frequentava a escola apenas para fazer desenhos e para perturbar. Não estava nem ai para os estudos - só tirava notas boas em Arte -, apesar de ter chagado a concluir o segundo ano do segundo grau.  

Lello iniciou sua trajetória artística fazendo desenhos em cadernos, até que surgiu a oportunidade de ele fazer letreiros para candidatos a vereador e para o comércio local. Desde a tenra idade, percebeu que tinha o dom para desenhar, e, por isso mesmo, se deixou levar pela profissão, não sendo possível, hoje, se ver exercendo outra atividade. Lello costuma trabalhar por encomenda, até porque se o artista não trabalhar desse jeito ele não sobrevive, já que as coisas estão difíceis, e sobreviver de arte no Brasil é complicado, pois falta incentivos fiscais e, principalmente, apoio dos órgãos governamentais. Nosso artista diz que se realiza mais quando executa um trabalho de forma espontânea, quando faz arte do seu gosto. Mas ele tem consciência também que viver apenas de arte espontânea no Brasil é difícil, e por isso sempre trata de convencer a si mesmo que precisa aceitar encomendas. 

ARTE EM GRAFITE 

Grafite em homenagem a Silvio Romero
Ao falar sobre o grafite, Lello diz que é a arte mais linda do mundo, nascida no subúrbio, discriminada e que hoje virou arte pop. O grafite é mais uma das formas de o ser humano se expressar, homenagear, passar uma mensagem para o transeunte e embelezar a cidade. Hoje, para Araújo, o grafite é o grande amor de sua vida - e para sempre será! (Lello Araújo foi um dos artistas grafiteiros que participou do projeto idealizado pelo poeta Assuero Cardoso, que tinha por proposta envolver e prestigiar os grafiteiros da terra, num trabalho de embelezamento do Colégio Estadual Silvio Romero). 

Lello costuma falar que nunca chegou a fazer curso de desenho ou de pintura. Ele esclarece que já sabia desenhar, já tinha noção de desenho, mas nunca chegou a fazer curso. Sua preocupação foi a de ir se aprimorando, pois, em toda profissão, em toda arte é preciso haver a prática para não se ficar para trás. Muita gente chaga inclusiva a perguntar a Lello se ele fez curso, mas ele diz que o que fez mesmo foi dar curso de grafite, com o apoio da prefeitura.  

Lello revelou que, em seu trabalho com grafite, se referencia em muitos brasileiros, pois hoje o nosso é o país que mais exporta grafiteiros para o mundo. O artista plástico lagartense lembra que o grafite nasceu no Booklin (EUA), e hoje tem grafiteiros do Brasil que dá aula onde a arte nasceu. Lello se espelha muito em Eduardo Kobra, que é um brasileiro famoso, e que atualmente viaja por diversos países fazendo arte. Seu outro referencial é Bankys, que é o grafiteiro mais famoso do mundo, e que - enquanto viajava por países em conflitos armados - pintou em grafite a imagem de um guerrilheiro atirando um buque de flores - imagem que virou símbolo atual da luta pela paz. 

MOTIVAÇÃO ARTISTICA  

A arte que embeleza também denuncia
O que motiva Lello a fazer arte é a necessidade de mostrar a cultura do povo para o povo, para o povo enxergar o quanto a cultura é grande. As dificuldades sentidas no cotidiano pelos brasileiros também são fontes de inspiração para compor sua arte. Lello Araújo chegou a produzir uma obra em grafite para o Sarau da Caixa D'Água, e ainda há um proposta de Alfonso Augusto (um dos organizadores do Sarau), para que ele grafite as colunas que sustentam o reservatório de água que costuma abrigar o mais importante evento cultural de nossa cidade na atualidade.  

QUANDO PINTAR SE TORNA UM VÍCIO 

Todo trabalho de Lello tem inicia quando o cliente o procura. O artista então realiza uma pesquisa na Internet, até encontrar uma imagem temática que se aproxime do desejo manifestado pelo contratante. Para a última exposição de quadros que fez, cujo tema era [o município de] Lagarto, Lello diz ter precisado fazer estudo dos locais que ele escolheu para retratar, e também tirou fotos dessas localidades e de pessoas.  

Em 2008, Araújo confeccionou 08 (oito) telas para uma evento que fizeram aqui em Lagarto, e que era uma exposição conjunta, com a participação de vários artistas plásticos da terra: Daniela Pessoa, Altair Alcântara, etc. Logo em seguida o artista parou de pintar telas, porque elas não tinham saída, e ele ainda não tinha nome na praça, não era um profissional conhecido em Lagarto. Depois de perceber que seu nome aos pouco se tornava conhecido, o artista foi tomada pela saudade de pintar - porque, no dizer de Lello Araújo, "pintar acaba virando um vício. Após trabalhar a primeira tela, pode se passar dois ou três anos que o artista acaba sendo invadido pela vontade de voltar a manipular o pincel outra vez". 

O GRAFITE QUE DÁ PRAZER 

Segundo Lello, o grafite se diferencia da pintura em tela por ser uma arte urbana, em que o artista não necessariamente tem que ficar entregue à calmaria das paredes de um quarto. O grafite se difere também por ser a arte do protesto e do embelezamento da cidade. O grafite tem por característica ainda ser uma arte de curta duração - o prazo de vencimento de um grafite é de aproximadamente cinco anos, enquanto uma arte impressa em tela pode resistir por anos a fio. Trabalhar com grafite é a forma de expressão artística que mais dá prazer a Lello. Ele revela que tanto o grafite quanto a pintura em tela estressam demais, já que ambas exigem esforço mental, e, por isso, costuma reversar entre uma forma de arte e outra, como forma de compensar o desgaste físico e emocional. 

QUANTO VALE A ARTE 
Esboço do que irá para a tela

Ao falar sobre seu processo de trabalho, o grafiteiro e pintor diz que, antes de iniciar uma obra, primeiro faz um esboço, um rascunho daquilo que deseja ver impresso na parede ou na tela. Sempre que trabalha pintando uma tela, Lello o faz a partir de uma fotografia, pois o vento, a poeira e outras variações do clima em ambientes externos podem contaminar a tinta a óleo que ele usa. 

O preço de uma tela pintada por Lello Araujo é definido por uma tabela nacional, que estabelece o valor por centímetros quadrado. Sempre que realiza um trabalha em grafite aqui em Lagarto, Lello costuma cobrar R$ 80,00 por metro quadrado - valor que sobe para R$ 100,00, quando o trabalho é executado em Aracaju ou em outras cidades. 

O artista embelezando a paisagem
Lello diz que, ao concluir uma obra em grafite, é invadido por um prazer imenso, como se tivesse acabado de fazer um filho, e afirma que nunca pinta um quadro pensando apenas no dinheiro que ele poderá lhe render - e prova disso é que já chegou a colocar preço em um quadro muito acima do valor real, para evitar assim que a tela viesse a ser adquirida. Ele prefere doar uma obra  a um amigo - que vai zelar, cuidar da pintura com carinho -, do que vendê-la. Lello confessa que, quando vai entregar uma obra ao comprador, sempre repete o mesmo discurso: "Olhe, aqui é como se eu tivesse feito um filho e agora estivesse doando ele para você. Gostaria que você tomasse conta dele como eu tomaria". 

A ANSIEDADE (SERÁ QUE FICOU LEGAL?) 

Um dia Lello Araujo estava em Aracaju, concedendo entrevista para uma emissora de televisão, quando sugeriram-lhe que permanecesse por lá, pintando telas que retratassem pontos turísticos, numa homenagem à capital de todos os sergipanos. Ele voltou para Lagarto com a ideia fixa de fazer esse trabalho, mas, ao aqui chegar, pessoas o aconselharam a primeiro homenagear sua terra, para que quando o artista chegasse em Aracaju alguém não viesse a dizer: "Olha, ele nunca fez nada por sua cidade!" A partir dai Lello criou gosto e, desde o inicio do mês de janeiro de 2015, começou a confeccionar novas telas. Mas esse foi um momento em que ele passou a ter insônia, pois, sempre que concluía uma obra e a botava para secar (o período de secagem de um quadro pintado a tinta óleo é de cerca de um mês), era tomado por grande ansiedade, e precisava ligar para os amigos que o apóia para ter certeza de que a pintura ficara legal). 
Pintura retrata onde o povoamento teria 

Esse trabalho de Lallo Araújo lhe provocou expectativa e ansiedade por antecipação, mas resultou na Exposição Lello Lagartense, que acabou recebendo um público muito superior ao esperado - a ponto de o artista chegar a afirmar que "Lagarto gosta de arte e apoia os artistas da terra". Nessa exposição, 17 obras foram colocadas à venda e 13 foram adquiridas. Atualmente, Lello pinta novas telas para atender pedidos de clientes que não conseguiram adquirir os quadros que desejavam ao longo do período em que durou a exposição em questão. O artista tem também a intenção de em 2016 fazer uma homenagem a Aracaju, pintando pontos turísticos e históricos (como Croa do Boré, Orlinha do Pôr-do-sol, Mercado Tales Ferraz, Edifício Estado de Sergipe (Maria Feliciana) e Ponte Aracaju-Barra dos Coqueiros), além de personalidades. 

GRAFITANDO E PINTANDO COM O MELHOR QUE HÁ

No trabalho que faz usando a técnica do grafite, Lello utiliza latex e bisnaga, com o diferencial de sempre fazer uso de material de qualidade, o que de melhor encontra no mercado. No final de cada obra em grafite, são dadas duas mãos de um verniz apropriado para parede, garantido assim que a pintura tenha uma durabilidade de, no mínimo, três anos. Quando pinta telas, Lello trabalha com o que há de melhor em tinta óleo (algumas dessas tintas ele compra diretamente da cidade de São Paulo; outras são importadas). Um quadro leva de quinze dias a um mês para secar superficialmente, enquanto sua secagem total pode exigir 50 anos. 

ARTE DO HOJE PARA O AMANHÃ

Lello é o artista da arte breve e da arte perene - daquela que é capaz de atravessar nosso tempo. Seu trabalho eterniza contextos e mostra-nos estilos de vidas de gerações do presente e do amanhã. Suas investidas sobre paredes e quadros revelam para Lagarto e para Sergipe um talento nato, um artista plástico de pinceladas e grafitagens comprometidas em denunciar, mas também em embelezar paisagens e personagens que cercam todos nós. 

Que a obra desse artista lagartense continue colorindo nossos caminhos e eternizando o presente que amanhã será o passado que não volta mais.


Fotos: Eduardo Bastos 
           Arquivo pessoal de Lello Araújo

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Grupo Escolar Silvio Romero: Um grito de Socorro

Prédio que pertence ao estado segue abandonado e invisível aos olhos do poder público.


Eduardo Bastos


Durante alguns anos de nossa adolescência residimos numa casa localizada na Rua Acrísio Garcez, atrás do Grupo Escolar Silvio Romero. À época, nesse prédio funcionava uma repartição pública, e isso garantia o bom estado de conservação do espaço. Exatamente nesse período estudávamos o ginasial no Colégio Nossa Senhora da Piedade. Sempre que retornávamos da aula matutina era comum um ou outro irmão deixar o material didático sob meus cuidados para escalar o muro desse Grupo. Não havia qualquer perigo naquele gesto, pois, àquela hora, os funcionários que labutavam por ali já tinha saído para almoçar, e o muro que ladeia a lateral e o fundo do prédio é tão largo e regular, que as caminhadas ao longo dele jamais se constituíam em desafios à lei da gravidade. Nos finais de semana e feriados a garotada do entorno costumava pular o muro desse prédio para usar todo seu espaço externo como cenário das brincadeiras de esconde-esconde e bangue-bangue (nesse tempo era comum meninos e meninas invadirem as ruas a qualquer hora do dia ou da noite para brincarem sem o menor receio de se tornarem vítimas da violência urbana).
Os registro historiográficos disponíveis nos esclarece que o Grupo Silvio Romero teve sua construção iniciada no ano de 1923, e foi o primeiro patrimônio público a receber o nome desse grande pensador lagartense. O governador Gracco Cardoso (1874 –1950) foi quem deliberou que esse Grupo fosse construído em cima dos escombros da antiga cadeia pública da cidade. Em dezembro de 1924 o prédio foi inaugurado. Ao logo dos anos as dependências do Grupo Escolar Silvio Romero serviria como unidade escolar, memorial e biblioteca pública, e até o ano de 2011 ainda permanecia sob a responsabilidade do estado e município.

O professor e historiador lagartense Claudeflanklin Monteiro, citando o estudioso Miguel André Berger, nos esclarece que "o Grupo Escolar Sílvio Romero foi um planejamento para atender não só a uma concepção pedagógica de época, marcada pelo método intuitivo e pelo método analítico de ensino da leitura, mas também para enfatizar a feição monumentalizante da arquitetura de então, haja vista a presença marcante da águia, símbolo do governo Graccho, como um pássaro que enxerga longe e voa alto - pretensões ideológicas e guias daquela profícua administração estadual.

Seu esvaziamento educacional teria ocorrido em função de questões políticas. Os governos que se sucederam a Graccho, em especial até a primeira metade da década de 50, eram adeptos do getulismo, e como de praxe, tentaram apagar a memória das ações administrativas de seus inimigos políticos. Dos anos 60 aos anos 80, especialmente com a construção da nova sede do Grupo Sílvio Romero (mais moderno e mais amplo), na Av. Francisco Gracez (hoje Escola Estadual Sílvio Romero), o prédio foi de tudo um pouco: de local para aprendizagem de cursos de secretariado e de corte e costura a repartição pública (tanto estaduais como municipais)." 

Por praticamente toda a década de 90 o Grupo Escolar Silvio Romero mergulho num estado de total abandono, e se transformou num ponto de usuários de drogas e mendigos. No início do ano de 1999, esse prédio passou por uma grande reforma e o secretário estadual de educação da época, Luiz Antônio Barreto o entregou aos lagartenses dia 20 de abril novinho em folha. Nesse momento, esse espaço passou a abrigar o Memorial e a Biblioteca Pública do nosso município. No início de 2010, voltou à baila o discurso de que a primeira escola pública implantada em Lagarto teria que desocupar esse prédio, face à necessidade de ele passar por nova reforma, que corrigisse principalmente problemas relacionados a infiltrações. Nesse instante, outras vozes se levantaram, contrárias ao funcionamento da Biblioteca e Memorial nesse local, sob a alegação que o prédio não oferecia acessibilidade a pessoas com dificuldade de locomoção, cadeirantes e idosos.

A retirada da Biblioteca e do Memorial do Grupo Escolar Silvio Romero nos início do segundo semestre de 2010 fez com que a existência desse prédio passasse a ser ignorado por todos os entes responsáveis pela manutenção e preservação do patrimônio público. O mato então cresceu e tomou conta de cada canto desse lugar. O lixo e as folhas - que caem sem parar das árvores frondosas que o fronteia - se acumulam por todos os espaços. Portas e janelas, desgastadas pela ação inclemente da chuva e do sol, já não representam obstáculos aos que costumam invadir o prédio onde outrora filhos ilustre de nossa cidade iniciaram suas instruções. Caminhos de papelões foram construídos por entre o matagal para que os usuários de crack e de outros entorpecente transitem dos muros ao prédio do Grupo Silvio Romero sem qualquer obstáculo. A porta principal desse prédio quase nunca se fecha, talvez porque os viciados que costumam habitar ocasionalmente o Grupo Silvio Romero contam com a certeza de que ocupam território neutro, relegado ao esquecimento para todo e sempre.

Nos contatos que tivemos com pessoas que foram ou que ainda são ligadas a órgãos públicos do nosso município, nos foi dito que em meados da década de 1990 esse prédio passou dois anos sem o seu telhado, exposto às intempéries da natureza. Pessoas que trabalham na região nos informaram que dias atrás a prefeitura realizou intervenção no prédio, removendo parte do telhado e o substituindo temporariamente por uma lona. Nos foi dito ainda que o processo de tombamento desse prédio chegou a ser iniciado, mas que ainda não foi concluído. Membros da Secretaria de Cultura do município esclareceram que já se encaminhou projeto à Secretaria Estadual de Cultura, visando reformar e viabilizar a volta do funcionamento desse prédio.

Hoje o estado de conservação do Grupo Escolar Silvio Romero causa indignação àqueles que amam lagarto, pois trata-se de um patrimônio público, localizado no coração da cidade, relegado ao abandono, e provocador de más impressões nas pessoas que nos visitam. Não são poucos os largartenses que costumam expressar no cotidiano a preocupação com a possibilidade real de a qualquer momento esse prédio sofrer um incêndio, uma vez que seu piso é todo em madeira, e haja vista ainda que os usuários de crack e de outras drogas que ocupam esse local costumam usar fósforos, isqueiro e velas durante as práticas de seus vícios. E se um dia as labaredas lamberem esse prédio de forma repentina e incontrolável, restará aos que residem nesse município tão somente lamentar essa perda patrimonial, sob o vislumbre de um cenário de escombros e cinzas.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015



CAJAZEIRAS

UMA MATA QUE ENCERRA MISTÉRIOS, MAS QUE NOS OFERECE O AR MAIS PURO QUE HÁ

Cajazeiras é um povoado que fica a 18km do centro de Lagarto. Quem chega a esse lugar trafegando por uma de suas estradas vicinais percebe de imediato que ao longo do tempo o homem agiu sem dó nem piedade em desfavor da mata nativa da região. A maioria dos que habitaram ou habitam essas terras fez uma opção clara pela devastação indiscriminada. Sendo assim, a mata acabou por dar lugar a roças e fazendas de pastagens rasteiras. A derrubada de árvores centenárias deu lugar também à pecuária, ovinocultura e a uma agricultura basicamente de subsistência. Roças e fazendas de grandes e médias extensões foram os tipos de ocupações escolhidos por agricultores e pecuaristas que se fixaram por essas bandas do território lagartense.

Sempre que chegamos ou deixamos Cajazeiras, o cenário por onde trafegamos é o de terras nuas, num descampado de perder de vista. A paisagem cabe num cartão postal, mas é ecologicamente desoladora. Apenas aqui, em terras da família dos Oliveira (dos irmãos Irineu, Alberto, Rogério e Erineusa) é que se fez uma opção clara e feliz pela preservação - que enche a paisagem de encanto e vida. A mata nesse espaço de chão se aproveitou bem da determinação preservacionista dos Oliveiras e os troncos das arvores ganharam altura, encorparam e a cada dia se fecham mais, num emaranhado de galhos e cipós. O resultado disso é que, sempre que chagamos na boca dessa mata, somos recebidos por ela com um abraço tão reconfortante e ameno, que esquecemos o sol abrasador e o calor insuportável que deixamos lá fora. Dentro dessa mata também vivemos a experiência única de sentir o ar poluído e viciado que trazemos em nossos pulmões ser renovado - como que num passe de mágica -, e substituído por outro mais limpo, mais leve e restaurador da sensação de o quanto é bom respirar.

Vez em quando tenho a oportunidade de ir a Cajazeiras e gosto em especial do meu encontro com essa mata. Ando devagar porque aqui não tenho pressa e quero que dure o máximo meu reencontro com a barriguda, o jatobá, o pau d’arco amarelo e roxo, o figo, o juazeiro, a jurema, a amêndoas, o figo, o caixão, o flamboyan, o itapicuru, o cedro, a laranjeira brava... Também preciso de tempo para admirar os cipós que tocam o chão e se estendem para o alto, até topar as copas das árvores. Quero que dure ao infinito esse tempo que fico ouvindo o som característico dos trocos das árvores mais altas se dobrando e se recompondo, rendendo-se e reagindo à força do vento. Necessito de muitos minutos ainda para penetrar a mata em passos lentos, pisado num tapete quase compacto de folhas secas caídas e em processo de decomposição. Mas preciso muito - e também - diminuir as forças de minhas pisadas, para evitar que cobras, lagartos e outros animais rastejantes fujam de mim apressados, confundindo-me com os predadores mais temíveis desse arvoredo.

Deixo a mata apenas quando o sol ameaça entrar em seu crepúsculo vespertino. Mas mesmo de fora continuo a espreitar-lá. Agora fico no terreiro testemunhando a noite avançar e a lenha da fogueira se desfazer em labaredas e cinzas. Ouço Xaguai, Elomar, Vital Farias, Geraldo Azevedo e Elba Ramalho enchem o ar de cantorias, enquanto rio das anedotas e estórias dos amigos donos do lugar, na companhia do único copo de vinho da noite. Nessa hora, a lua brilha imponente, iluminando tudo ao redor, e as lembranças da cidade me chegam apenas através das luzes artificias que brilham ao longe. O avançar da noite culmina com o momento de apreciar, mas também de respeitar a intimida da mata da Cajazeira, deixando que ela fique ali soturna e quieta, fechada em seus mistérios profundos e indecifráveis.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

UMA PRAÇA, UMA CAPELA E DOIS PERSONAGENS QUE UM DIA SE CRUZAM PARA SELAREM SEUS FINS TRÁGICOS


Por muitos anos de minha vida eu e minha família moramos na praça Filomeno Hora. Depois fomos residir na Praça Sebastião Garcez, que é uma praça continua à Filomeno Hora. Nesse tempo era aqui que tudo acontecia. Boa parte do comércio de nossa cidade se concentrava aqui. Todos os shows, festas e concentrações populares aconteciam aqui. Nos dias de sábados e domingos, assim que terminava a missa na matriz, todos os jovens se dirigiam à praça Filomeno Hora para namorar, encontrar colegas, colocar os papos em dia, ou simplesmente desfilar para mostrar as roupas e os sapatos que tinham acabado de adquirir. Como não tínhamos a violência que temos hoje, a juventude desfilava para lá e para cá ao redor da praça ou por entre os canteiros, sem qualquer preocupação. O movimento na Filomeno Hora só tinha fim perto das vinte e três horas. Nesse momento tudo silenciava, e apenas um ou dois guardas sonolentos cochilavam sob o sereno das madrugadas.


Praça Filomeno Hora - 2014
No tempo em que residia na Filomeno hora nunca tive curiosidade em saber porquê essa praça recebera esse nome. Apenas muitos anos depois é que meu interesse viria a ser despertado. É que um dia eu visitava o Povoado Santo Antônio na companhia do meu amigo Paulo Oliveira, quando ele me convidou para visitar um senhor que é se tio, que se chama Turibio – que é um ancião que guarda na memória de boa parte da história do povoado Santo Antônio, e que tem sua casa localizada entre duas capelas e um cemitério.
Seu Turibio é um dos guardiões da memória do seu povoado
Para que compreendêssemos as razões para que uma das capela estivesse naquele local, seu Turibio teve que rememorar o passado. Ele nos contou que em 1902 Filomeno Hora era advogado e juiz de direito de lagarto. Às 16h do dia oito de janeiro do ano em questão, Filomeno, atendendo a apelos de conhecidos, se dirigiu à feira da cidade - que acontecia nas imediações onde hoje funciona a Escola Reunida - para que pudesse interferir numa confusão, em que alguns soldados espancavam e ameaçavam prender dois funcionários do marido da irmã do magistrado, de nomes Severino Ferreira Duarte e Aristides dos Santos.

A chegada de Filomeno Hora à praça foi providencial para pôs fim ao conflito, mas desagradou os policiais, principalmente a Manuel Posthumo Monteiro - que ocupava um posto superior à dos soldados envolvidos no tumulto, e que era tio do homem que tiraria a vida do juiz ainda naquele dia fatídico. Utilizando-se do seu poder, Manuel ordenou aos policiais que fossem buscar armas para reprimir aqueles que ousaram interferir na briga formada no meio da feira.

No retorno dos policiais, aquele que se mostrou mais exaltado foi Adolfo Monteiro. Quando os soldados tentaram intimidar os presentes gritando "afastem-se, senão atiramos", receberam como resposta do magistrado um desafio perigoso: "pois então atirem". O policial Adolfo Monteiro se antecipou aos colegas de farda e alvejou o juiz com um tiro de fuzil que lhe atravessou o corpo.

Após perceber que tirara a vida da autoridade maior do judiciário da cidade de Lagarto, Adolfo evadiu-se do local, e foi parar na Praça do Gome - onde quase veio a ser capturado. Depois Adolfo empreendeu fuga maior e foi se esconder na casa de uma irmã, residente no povoado Santo Antônio.

Às 22h do mesmo dia do assassinato de Filomeno Hora, seu irmão, Alcino Monteiro, se fez acompanhar de alguns amigos armados e saíram no encalce do assassino do juiz. Encontraram-no e o retiraram do esconderijo mesmo sob protestos dos proprietários da residência. Adolfo foi então arrastado para fora da casa da irmã, quando então tiveram início as torturas - que se prolongaram madrugada afora, e só chegaram ao fim quando Adolfo foi atingido por um tiro fatal, no corredor que dá acesso ao povoado Santo Antônio.
Capela construída em memória de Adolfo Monteiro 
Aquela conversa informal na residência do seu Turibio pela primeira vez me fez compreender as razões para que o espaço onde residi por uma boa temporada de minha vida se chamasse Filomeno Hora (antes do assassinato do juiz em plena praça da feira essa espaço se chamava "Praça Forca", em razão de haver mesmo uma forca no meio da praça. Nesse papo com o tio do meu amigo, também fiquei sabendo que no local em que o assassino de Filomeno Hora morreu os moradores da região ergueram uma cruz - e a denominaram de "Cruz de Adolfo". Depois construíram uma capela para que os moradores do Santo Antônio pudessem rezar pela alma daquele que pagou com a própria vida por uma vida que estupidamente ceifou.

segunda-feira, 16 de março de 2015

ANTIGA ESTAÇÃO FERROVIÁRIA DE SALGADO: 

UM MARCO HISTÓRIA QUE VAI SE APAGANDO AO SABOR DA BORRACHA DO DESCASO


                                                                                                                 José Eduardo Bastos


Salgado é um dos municípios sergipanos que teve sua história fortemente marcada pela chegada da ferrovia. Inicialmente esse lugar era conhecido como Pau Ferro, depois passou a se chamar Salgadinho e finalmente veio a receber a denominação pelo qual é conhecido nos dias atuais – Salgado. Em 1902 o escritor lagartense Silvio Romero citou Salgado no quadro corográfico sergipano, destacando o fato de esse lugar possuir grande riqueza mineral.

As águas medicinais da fonte termal localizada no bosque balneário público dessa cidade, capitadas de modo natural ou artificial, têm propriedades físico-químicas diversas daquelas das águas comuns e, por isso, em menor teor, apresentam-se como de ação eficiente.

Com a construção de sua linha férrea, Salgado passou a merecer mais atenção, especialmente de moradores como os do município de Estância, que perceberam que Salgado tinha se tornado o sítio que oferecia a facilidade de embarcar em trens com destino a capitais como Aracaju e Salvador.


Antiga Estação Ferroviária de Salgado
A implantação do trecho da ferrovia que atravessou terras de Salgado se mostrou por demais difícil, haja vista as série de irregularidades encontradas nos terreno por onde o trem teria que passar. Acrescente-se a isso o fato de inúmeros trechos - por onde dormentes e trilhos teriam que se estender - serem cortados pela bacia hidrográfica do Rio Piaui. Na prática, isso implicava maior número de obstáculos a serem superado pelos garimpeiros envolvidos nos trabalhos de instalação dessa ferrovia.
Quando a linha férrea teve seus trabalhos concluídos e começou a funcionar, Salgado passou a chamar a atenção da classe política do estado. A população pediu, e finalmente a 04 de outubro de 1927 foi criado o município. Entretanto, Salgado só veio a alcançar a categoria de cidade em 1938, passando a fazer parte dos quadros coreográficos da divisão territorial, administrativa e judicial do nosso estado. Durante o quinquênio 1938/1943, Salgado pertenceu à comarca de Lagarto, depois a de Estância e finalmente a de Itaporanga.

O lixo está por toda parte
Em virtude da praticidade oferecida pelo trem, Salgado se transformou numa cidade turística. Houve um aumento significativo da população. Apesar de no final da década de 1950 a sede do município ainda não contar com energia elétrica, água encanada nem ruas calçadas, Salgado viveu um período de grande dinamismo econômico e social. Os chamados "veranistas" passaram a invadir essa cidade sergipana nos períodos de alta estação em busca de tranquilidade e, principalmente, das propriedades medicinais de suas águas termais. Com isso, os melhores imóveis do lugar foram adquiridos por gente da capital. As ruas e praças de Salgado se encheram de turistas. O comércio incipiente passou a lucrar com essa invasão de "veranistas", e a feira livre se transformou numa das mais concorridas; também naquela em que se praticavam os preços mais altos da região.

Devido ao número sempre crescente de pessoas que todos os dias passavam pela estação ferroviária de Salgado, o comércio local experimentou pela primeira vez significativo crescimento. Os comerciantes tiveram então oportunidade de divulgar e vender produtos manufaturados como panelas de barro, peneiras, abanos, vassouras de palha, esteira de junco, tábua, rolos, candeeiros, bicas e ainda os tradicionais tamancos.

A passagem da ferrovia em terras salgadenses também criou empregos diretos e indiretos para a população local, uma vez que fez surgir demandas sempre crescentes por lenhas e dormentes. Alguns desses trabalhadores acabariam sendo absorvidos pela empresa responsável pela administração desse trecho de ferrovia, agora na condição de ferroviários.

Abandono completo
Até pelo menos o início da década de 1970, o trem que passava duas vezes ao dia por Salgado, em direção a Aracaju ou Salvador, transportava passageiros e cargas. Eram viagens marcadas pela tranquilidade e pela satisfação dos passageiros em verem a paisagem se descortinando ante seus olhos, à medida do avanço lento das locomotivas. O único incômodo que merece registro é o fato de, às vezes - e apenas quando o trem era o "Corujao", que passava por terras salgadenses geralmente nas madrugadas -, o vento mudar de direção e invadir cabines, espalhando fumaça preta e fuligens, que acabavam por impregnarem as roupas de todos.

Houve um período em que esse autor frequentava muito Salgado, e até chegou a realizar trabalhos de recenseamentos em povoados de nomes "Quebradas". Nessas localidades testemunhei o trem passar sempre depois das 15h - com seu sacolejar, som característico e cargas indecifráveis. Noutras tardes, quem passava por mim mais apressado era apenas um trole, conduzido por um maquinista solitário, que ia cumprir a missão de fazer reparos e manutenções nos trilhos e dormentes que se estendiam à frente. Nessa época, lembro-me de passar diariamente pela estação ferroviária de Salgado, e de notar que o prédio - que outrora serviu como ponto de embarque e desembarque de mercadorias e passageiros - ainda se mantinha em bom estado de conservação (apesar de permanecer na maioria do tempo fechado, sem qualquer uso prático).
Até o telhado já foi roubado

Em 2002, dois dos meus irmãos chegaram a residir por um breve período numa casa localizada em frente à estação ferroviária de Salgado. Eles contam que todos os dias, sempre que os ponteiros dos relógios se aproximavam das 3h da madrugada, o barulho do trem acordava a todos. À passagem da locomotiva, todo o chão tremia, assim como os móveis e camas das residências no entorno da estação. O trem agora não levava mais passageiros. Desde que estradas melhores foram construídas no estado, e a partir do momento em que caminhões e outros transportes coletivos passaram a garantir mais conforto e rapidez aos usuários, o trem (que por algum tempo interrompeu o sono de meus irmãos no meio da madrugada) passou a servir à Petromisa (Petrobrás Mineração S/A), fazendo o transporte do cloreto de potássio produzido em Sergipe até a Bahia.
As pichações estão por toda parte

Há cerca de 12 anos ainda era possível se dizer que a estrutura da estação ferroviária de Salgado permanecia em bom estado de conservação, apesar de nenhum serviço funcionar ali, e não obstante o prédio demostrar estar mergulhando num processo gradativo de deterioração. No último domingo do mês de janeiro do corrente, nosso amigo José Santana Curvelo esteve em visita ao município de Salgado, e aproveitou para conferir as condições físicas do prédio da antiga estação. Na ocasião, José e seus acompanhantes se depararam com uma situação de abandono tão revoltante, que a atitude mais sensata que lhes ocorreu naquele momento foi a de registrarem tudo em fotos, para que um público maior viesse a se inteirar daquele descaso.

No testemunho que deu a esse autor, José Santana Curvelo disse que sempre que passava por Salgado, indo em direção às Quebradas (Povoados de Salgado), via o imponente casario de passagem de maquinas e carga ou descarga do trem. Toda vida ele acreditou ser esse um local histórico para a cidade, que nasceu às margens do traçado de ferro. Sendo assim, ele disse ter ficado estarrecido quando esteve recentemente em Salgado e se deparou com o estado de abandono em que se encontra aquele prédio. Pichações, lixo e queda do telhado denotam o desprezo do poder público pela história de seu povo, e levam ao esquecimento o quanto de suor e sangue se derramou no passado para que por ali passassem aqueles trilhos. Nosso amigo Zé Santana disse que, na condição de Sergipano, ficou triste por ver uma parte importante da nossa história entregue ao abandono e destruição.

Não se pode imaginar que nos dias de hoje o trem possa competir com os meios de transportes modernos. A substituição gradativa do trem pelos transportes rodoviários, entretanto, não justifica o abandono a que foi submetido o prédio da estação ferroviária de Salgado. Isso aqui é um patrimônio, construído com o dinheiro do povo, e que guarda a história de vida de várias gerações de salgadenses. Se vivêssemos em um país, um estado ou município que tivessem preocupação com a preservação da memória de sua gente, a estação ferroviária de Salgado certamente já teria sido tombada e seu prédio principal, reformado e preservado, hoje estaria abrigando qualquer uma dessas estruturas públicas: uma escola, uma creche, um memorial, um museu, um centro cultural, uma biblioteca ou até mesmo um centro administrativo. Mas vivemos em um Estado em que não se fala em preservação do patrimônio - nem como discurso vazio. Salgado também é um município que jamais teve a sorte de experimentar administrações públicas preocupadas e comprometidas com a cultura e preservações da história do seu povo. Sendo assim, não é difícil se prever que a antiga estação ferroviária dentro em breve figurará apenas como uma lembrança de um marco histórico apagado da memória do salgadense pela borracha do descaso.

Fotos: José Santana Curvelo