segunda-feira, 16 de março de 2015

ANTIGA ESTAÇÃO FERROVIÁRIA DE SALGADO: 

UM MARCO HISTÓRIA QUE VAI SE APAGANDO AO SABOR DA BORRACHA DO DESCASO


                                                                                                                 José Eduardo Bastos


Salgado é um dos municípios sergipanos que teve sua história fortemente marcada pela chegada da ferrovia. Inicialmente esse lugar era conhecido como Pau Ferro, depois passou a se chamar Salgadinho e finalmente veio a receber a denominação pelo qual é conhecido nos dias atuais – Salgado. Em 1902 o escritor lagartense Silvio Romero citou Salgado no quadro corográfico sergipano, destacando o fato de esse lugar possuir grande riqueza mineral.

As águas medicinais da fonte termal localizada no bosque balneário público dessa cidade, capitadas de modo natural ou artificial, têm propriedades físico-químicas diversas daquelas das águas comuns e, por isso, em menor teor, apresentam-se como de ação eficiente.

Com a construção de sua linha férrea, Salgado passou a merecer mais atenção, especialmente de moradores como os do município de Estância, que perceberam que Salgado tinha se tornado o sítio que oferecia a facilidade de embarcar em trens com destino a capitais como Aracaju e Salvador.


Antiga Estação Ferroviária de Salgado
A implantação do trecho da ferrovia que atravessou terras de Salgado se mostrou por demais difícil, haja vista as série de irregularidades encontradas nos terreno por onde o trem teria que passar. Acrescente-se a isso o fato de inúmeros trechos - por onde dormentes e trilhos teriam que se estender - serem cortados pela bacia hidrográfica do Rio Piaui. Na prática, isso implicava maior número de obstáculos a serem superado pelos garimpeiros envolvidos nos trabalhos de instalação dessa ferrovia.
Quando a linha férrea teve seus trabalhos concluídos e começou a funcionar, Salgado passou a chamar a atenção da classe política do estado. A população pediu, e finalmente a 04 de outubro de 1927 foi criado o município. Entretanto, Salgado só veio a alcançar a categoria de cidade em 1938, passando a fazer parte dos quadros coreográficos da divisão territorial, administrativa e judicial do nosso estado. Durante o quinquênio 1938/1943, Salgado pertenceu à comarca de Lagarto, depois a de Estância e finalmente a de Itaporanga.

O lixo está por toda parte
Em virtude da praticidade oferecida pelo trem, Salgado se transformou numa cidade turística. Houve um aumento significativo da população. Apesar de no final da década de 1950 a sede do município ainda não contar com energia elétrica, água encanada nem ruas calçadas, Salgado viveu um período de grande dinamismo econômico e social. Os chamados "veranistas" passaram a invadir essa cidade sergipana nos períodos de alta estação em busca de tranquilidade e, principalmente, das propriedades medicinais de suas águas termais. Com isso, os melhores imóveis do lugar foram adquiridos por gente da capital. As ruas e praças de Salgado se encheram de turistas. O comércio incipiente passou a lucrar com essa invasão de "veranistas", e a feira livre se transformou numa das mais concorridas; também naquela em que se praticavam os preços mais altos da região.

Devido ao número sempre crescente de pessoas que todos os dias passavam pela estação ferroviária de Salgado, o comércio local experimentou pela primeira vez significativo crescimento. Os comerciantes tiveram então oportunidade de divulgar e vender produtos manufaturados como panelas de barro, peneiras, abanos, vassouras de palha, esteira de junco, tábua, rolos, candeeiros, bicas e ainda os tradicionais tamancos.

A passagem da ferrovia em terras salgadenses também criou empregos diretos e indiretos para a população local, uma vez que fez surgir demandas sempre crescentes por lenhas e dormentes. Alguns desses trabalhadores acabariam sendo absorvidos pela empresa responsável pela administração desse trecho de ferrovia, agora na condição de ferroviários.

Abandono completo
Até pelo menos o início da década de 1970, o trem que passava duas vezes ao dia por Salgado, em direção a Aracaju ou Salvador, transportava passageiros e cargas. Eram viagens marcadas pela tranquilidade e pela satisfação dos passageiros em verem a paisagem se descortinando ante seus olhos, à medida do avanço lento das locomotivas. O único incômodo que merece registro é o fato de, às vezes - e apenas quando o trem era o "Corujao", que passava por terras salgadenses geralmente nas madrugadas -, o vento mudar de direção e invadir cabines, espalhando fumaça preta e fuligens, que acabavam por impregnarem as roupas de todos.

Houve um período em que esse autor frequentava muito Salgado, e até chegou a realizar trabalhos de recenseamentos em povoados de nomes "Quebradas". Nessas localidades testemunhei o trem passar sempre depois das 15h - com seu sacolejar, som característico e cargas indecifráveis. Noutras tardes, quem passava por mim mais apressado era apenas um trole, conduzido por um maquinista solitário, que ia cumprir a missão de fazer reparos e manutenções nos trilhos e dormentes que se estendiam à frente. Nessa época, lembro-me de passar diariamente pela estação ferroviária de Salgado, e de notar que o prédio - que outrora serviu como ponto de embarque e desembarque de mercadorias e passageiros - ainda se mantinha em bom estado de conservação (apesar de permanecer na maioria do tempo fechado, sem qualquer uso prático).
Até o telhado já foi roubado

Em 2002, dois dos meus irmãos chegaram a residir por um breve período numa casa localizada em frente à estação ferroviária de Salgado. Eles contam que todos os dias, sempre que os ponteiros dos relógios se aproximavam das 3h da madrugada, o barulho do trem acordava a todos. À passagem da locomotiva, todo o chão tremia, assim como os móveis e camas das residências no entorno da estação. O trem agora não levava mais passageiros. Desde que estradas melhores foram construídas no estado, e a partir do momento em que caminhões e outros transportes coletivos passaram a garantir mais conforto e rapidez aos usuários, o trem (que por algum tempo interrompeu o sono de meus irmãos no meio da madrugada) passou a servir à Petromisa (Petrobrás Mineração S/A), fazendo o transporte do cloreto de potássio produzido em Sergipe até a Bahia.
As pichações estão por toda parte

Há cerca de 12 anos ainda era possível se dizer que a estrutura da estação ferroviária de Salgado permanecia em bom estado de conservação, apesar de nenhum serviço funcionar ali, e não obstante o prédio demostrar estar mergulhando num processo gradativo de deterioração. No último domingo do mês de janeiro do corrente, nosso amigo José Santana Curvelo esteve em visita ao município de Salgado, e aproveitou para conferir as condições físicas do prédio da antiga estação. Na ocasião, José e seus acompanhantes se depararam com uma situação de abandono tão revoltante, que a atitude mais sensata que lhes ocorreu naquele momento foi a de registrarem tudo em fotos, para que um público maior viesse a se inteirar daquele descaso.

No testemunho que deu a esse autor, José Santana Curvelo disse que sempre que passava por Salgado, indo em direção às Quebradas (Povoados de Salgado), via o imponente casario de passagem de maquinas e carga ou descarga do trem. Toda vida ele acreditou ser esse um local histórico para a cidade, que nasceu às margens do traçado de ferro. Sendo assim, ele disse ter ficado estarrecido quando esteve recentemente em Salgado e se deparou com o estado de abandono em que se encontra aquele prédio. Pichações, lixo e queda do telhado denotam o desprezo do poder público pela história de seu povo, e levam ao esquecimento o quanto de suor e sangue se derramou no passado para que por ali passassem aqueles trilhos. Nosso amigo Zé Santana disse que, na condição de Sergipano, ficou triste por ver uma parte importante da nossa história entregue ao abandono e destruição.

Não se pode imaginar que nos dias de hoje o trem possa competir com os meios de transportes modernos. A substituição gradativa do trem pelos transportes rodoviários, entretanto, não justifica o abandono a que foi submetido o prédio da estação ferroviária de Salgado. Isso aqui é um patrimônio, construído com o dinheiro do povo, e que guarda a história de vida de várias gerações de salgadenses. Se vivêssemos em um país, um estado ou município que tivessem preocupação com a preservação da memória de sua gente, a estação ferroviária de Salgado certamente já teria sido tombada e seu prédio principal, reformado e preservado, hoje estaria abrigando qualquer uma dessas estruturas públicas: uma escola, uma creche, um memorial, um museu, um centro cultural, uma biblioteca ou até mesmo um centro administrativo. Mas vivemos em um Estado em que não se fala em preservação do patrimônio - nem como discurso vazio. Salgado também é um município que jamais teve a sorte de experimentar administrações públicas preocupadas e comprometidas com a cultura e preservações da história do seu povo. Sendo assim, não é difícil se prever que a antiga estação ferroviária dentro em breve figurará apenas como uma lembrança de um marco histórico apagado da memória do salgadense pela borracha do descaso.

Fotos: José Santana Curvelo